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Você é manobrista? Preconceito persegue executivo negro de banco

19 jul 2020, 16:00 - atualizado em 17 jul 2020, 7:19
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“Definitivamente, somos um país racista”, disse Vanessa Lobato, vice-presidente de recursos humanos do Banco Santander Brasil (Imagem: Money Times/Gustavo Kahil)

No mês passado, quando as manifestações antirracistas nos Estados Unidos tomaram o noticiário do mundo todo, um canal de TV à cabo brasileiro impressionou ao não ter sequer um comentarista negro debatendo a questão no horário nobre — em um país em que negros e pardos são maioria.

O acerto de contas dos Estados Unidos tem feito inúmeras nações refletirem sobre suas disparidades raciais. O Brasil, país que tem a maior população negra fora da África, tem uma estrutura de poder quase inteiramente branca — não há ministros negros — e que dá pouca atenção governamental a questões raciais.

É um desequilíbrio que fica evidente no sistema financeiro.

Nenhum grande banco da maior economia da América Latina, um país de 210 milhões, tem um presidente negro ou mesmo um negro em seu conselho de administração.

O percentual de negros em cargos de diretoria ou similar nos principais bancos é semelhante ao dos EUA, em que apenas 3% desses cargos são ocupados por negros, mas cuja população negra é de 13%.

“Definitivamente, somos um país racista”, disse Vanessa Lobato, vice-presidente de recursos humanos do Banco Santander Brasil (SANB11).

É o que sentiu na prática Haroldo Nascimento, 36 anos, gerente de estratégia de varejo do Banco Bradesco (BBDC3). Nascimento, que é negro, chegou a uma conferência sobre administração em São Paulo quando um homem branco desceu de um carro e lhe entregou as chaves.

Nascimento jogou-as no chão.

“Você não trabalha aqui?” o homem perguntou.

“Você trabalha?” Nascimento respondeu e foi embora.

Como nos EUA, o racismo brasileiro remonta à escravidão. Cerca de 40% de todos os africanos escravizados enviados para as Américas foram enviados para o Brasil.

O país foi o último a proibir a prática, em 1888, e depois atraiu imigrantes europeus para tentar “embranquecer” sua sociedade.

Ao contrário dos EUA, o Brasil nunca teve leis segregando escolas ou transporte público. Isso levou muitos a insistir que não há realmente nenhum problema, que o Brasil é uma “democracia racial” e que não há como compará-lo aos EUA.

Quem argumenta que a discriminação racial não foi um obstáculo importante em sua carreira é Edilson Dias dos Reis, diretor de sistemas do Bradesco, um dos poucos diretores negros de um grande banco.

Reis diz que não enfrentou preconceito em sua ascensão profissional e que os sacrifícios de sua mãe e seu trabalho duro foram determinantes na trajetória. “Disciplina ajuda”, disse.

No Banco do Brasil, Tiago Cruz Alexandre, gerente de negócios digitais no laboratório do banco no Vale do Silício também diz não ter passado por situações de racismo no BB. Ele trabalhou na tesouraria, onde diz ter encontrado “uma equipe bastante diversa”.

Quem argumenta que a discriminação racial não foi um obstáculo importante em sua carreira é Edilson Dias dos Reis, diretor de sistemas do Bradesco (Imagem: Money Times/Gustavo Kahil)

Dados sugerem um conjunto mais sistêmico de problemas do que apenas nos bancos. Entre os 10% da população do Brasil com a menor renda per capita, 75% são negros, de acordo com o IBGE.

Um estudo do Instituto Ethos constatou que, das 500 maiores empresas do Brasil, os negros ocupam 4,7% dos cargos de alta gerência. As mulheres negras são 0,4%.

Cerca de 24% dos funcionários dos cinco maiores bancos do país são negros, segundo dados compilados pela Bloomberg e pelo sindicato dos trabalhadores bancários.

“Os processos de recrutamento de empresas geralmente descartam os negros logo no início”, disse Roberta Silva, superintendente de serviços de administração fiduciária da unidade de gestão de fortunas do Itaú Unibanco, que é negra.

Existem muitas explicações do porquê. Dos alunos brasileiros, da creche ao ensino médio, 18% frequentam escolas particulares, que costumam enfatizar o inglês e outras habilidades, o que facilita acesso às universidades públicas.

Os brasileiros de classe baixa, a maioria negros, costumam trabalhar para ajudar a suprir as necessidades básicas das famílias.

Também existem fatores mais sutis. Embora os prédios nunca tenham tido entradas segregadas com base na raça (como alguns dos EUA já tiveram), muitos têm “entradas de serviço” que acabam sendo usadas por funcionários negros.

Nascimento, executivo negro do Bradesco, disse que todas essas questões criam barreiras para entrar nas finanças — e um telhado de vidro para quem consegue chegar lá. Ele faz parte dos esforços recentes para melhorar as coisas.

Nascimento chegou ao Bradesco por meio de um programa que recruta em uma faculdade de maioria negra e que oferece cursos complementares.

Mais de 450 pessoas passaram nesse programa. Nascimento é mentor em um grupo de diversidade negra no Bradesco, chamado AfroBra.

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Métricas de remuneração

No Santander, aumentar o número de funcionários negros faz parte das métricas de remuneração dos executivos, disse Lobato. O objetivo do banco é ter uma força de trabalho de 30% de negros até 2021.

As medidas para isso incluem treinamento e alteração dos procedimentos de recrutamento. No programa de trainees, por exemplo, o número de candidatos negros caía drasticamente quando chegava a etapa de enviar um vídeo.

O Itaú (ITUB4) decidiu evitar exigir conhecimentos de inglês ou um diploma universitário ao contratar para sua área de tecnologia, fornecendo as habilidades necessárias ao funcionário uma vez dentro do banco.

No ano passado, o banco lançou um programa de mentoria para negros, com duração de 12 meses, com diretores e diretores-executivos, disse Valéria Marretto, diretora de recursos humanos.

“Tanto os clientes quanto os funcionários precisam ver que os negros podem prosperar nos bancos”, disse Bruno Scaldaferri, 38 anos, que é negro e passou 17 anos nas agências do Santander no Nordeste antes de se tornar superintendente de recursos humanos para diversidade e inclusão no ano passado.

O Itaú decidiu evitar exigir conhecimentos de inglês ou um diploma universitário ao contratar para sua área de tecnologia, fornecendo as habilidades necessárias ao funcionário uma vez dentro do banco (Imagem: Money Times/Gustavo Kahil)

Tais programas estão crescendo, mas têm pouco reflexo na política nacional. O presidente Jair Bolsonaro fez campanha contra os programas de cotas no serviço público e no ensino superior, embora não tenha havido grande mudança na legislação desde sua eleição.

Como o problema é econômico e social, os negros nas finanças enfrentam uma série de dificuldades.

Roberta Silva, 42 anos, diz que seu próprio pai era executivo de um banco e que ela frequentou escolas particulares. Os colegas de classe zombavam de seus cabelos e a chamavam de “negrinha fedida”. Ela acrescenta que, quando vai representar o banco fora, “sinto que sempre tenho que quebrar estereótipos”.

Ela contou que foi abordada recentemente por um par de outra divisão do Itaú que pediu que ela falasse com o estagiário negro dele.

O estagiário era talentoso, mas vinha se fechando. Quando ela falou com ele, ele disse que se sentia um peixe fora d’água pois seus colegas gastam no almoço tanto quanto sua mãe gasta nas compras do mês.

Jaqueline Conceição da Silva, diretora executiva do Coletivo Di Jejê, que oferece treinamento em questões raciais a professores e empresas, diz que, além da contratação, os bancos poderiam fazer mais direcionando linhas de crédito para empreendedores negros. “Isso não existe no Brasil”, disse.

Há claramente um longo caminho a percorrer. Mas a recente revolta nos EUA pode estar ajudando. O Brasil teve neste ano manifestações antirracismo.

E, depois que as mídias sociais se insurgiram contra o programa de TV sem negros no mês passado, a rede de TV responsável trouxe uma equipe toda negra na noite seguinte, dizendo que “ouviu a mensagem”. Depois disso, duas mulheres negras passaram a fazer parte da lista permanente de comentaristas do programa.