Uma salada de Bolsonaro, Minicontratos e Cisnes Negros
Por Felipe Miranda, CEO da Empiricus Research
“Não precisava ter vindo assim tão formal. Se eu soubesse que viria vestido assim, tinha colocado um terno.”
Foi assim que ele entrou na sala, comentando, com a sagacidade de sempre, o traje de seu interlocutor, que vestia tênis de corrida, calça jeans escura e camiseta básica da Hering. Após os cumprimentos, emendou:
“O Brasil está bom, você também está percebendo? Ah, que ótimo. Mesmo sentimento aqui. Como vocês tão vendendo lá? Pois é, maravilha, é isso mesmo. Tem uma onda vindo, você captura na confiança das pessoas, nas conversas, nos negócios acontecendo. Juro baixo, inflação controlada, balanço de pagamentos em ordem. Lá fora deu uma acalmada também.
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Hoje tá sofrendo um pouco, mas o DI tá comportado, cê viu, né? Tô achando, cara, que o BC vai cortar o juro. Que cê acha? Claro, não é pra agora. Lá pra frente. Mas tem dinheiro pra ganhar aí. Tem um carrego bom na curva e espaço pra vir pra baixo. Então, ou cê ganha uma porradinha, ou pega o carrego, porque alta de juro não vem. O que cê falou? Ah, já foi, o fiscal vai arrumar. A equipe é muito brilhante e quer fazer. O político também já se construiu. Você percebe o consenso; querem fazer.
O risco é o próprio Bolsonaro, que ninguém sabe direito o que pensa da reforma da Previdência e nunca foi, de fato, liberal. Mas, no final, vai vir algo e o mercado vai gostar. É, você tem um ponto. Esse papo de envolvimento da família com as milícias é forte no RJ mesmo e pegaria bem mal pro Brasil em termos institucionais, mas seria mais ruído de curto prazo.
O trend de longo prazo está formado e nada mudou. Bicho, agora vai ter uma coisa que a gente nem lembra mais como é direito: crescimento. A receita do Itaú não cresce há quatro anos. Pode pegar lá. Cara, eu tô falando do Itaú, entende? Agora, pensa que a receita vai crescer. As despesas estão muito menores. O lucro vai voar. Então, quando você olha valuation de 3x book, parece caro, mas se justifica porque tem growth. Fora esse tsunami de pessoa física começando a investir pra valer agora. Vai ser porrada.”
“Ele” e o “interlocutor” se encontraram ontem. “Ele” é um grande investidor, uma das pessoas mais inteligentes e brilhantes do mercado financeiro. Gênio real. O “interlocutor” escreve newsletters financeiras diárias a serem publicadas por volta das 10 horas (da manhã).
Transcrevo o diálogo – confesso: com alguns contornos um pouco mais fortes apenas para marcar o ponto (ao melhor estilo “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”), de maneira bem reduzida e sem preservar a cronologia – com dois objetivos.
Primeiro porque, sempre que tenho a oportunidade de aprender com gente brilhante, muito mais inteligente (e muito, mas muito mais rica), me sinto no dever de dividir isso com meus leitores. Certo ou errado, trato a Empiricus como verdadeira vocação. Jamais subestime a oportunidade de ouvir e estar com pessoas (muito) melhores do que você; são fonte valiosa de conhecimento. Ressalva rápida: não confundir com a tática “quem não sabe ensina”. Para ter real autoridade sobre investimentos e como ganhar dinheiro, precisa ter ganhado dinheiro. Caso contrário, é falsidade ideológica.
A outra razão para abrir o texto com o diálogo acima é porque encaixa bem como uma espécie de “satisfação” após o tombo dos mercados na véspera, o pior pregão para o Ibovespa desde o fatídico Joesley Day.
Como estou bem otimista com os ativos brasileiros e sei que muitos de nossos assinantes estão posicionados para capturar esse otimismo e transformá-lo em dinheiro no bolso, me sinto na obrigação de transmitir-lhes uma resposta formal em dias como esse. Seria terrível passar uma ideia de espécie de autismo aqui, como se eu não me sensibilizasse com as perdas diárias, marcadas a mercado, ainda que representem uma pequena e marginal correção diante dos lucros dos últimos meses. Sim, eu sofro junto e faço questão de mostrar meu rosto (e minha opinião) nos momentos em que a entropia do sistema aumenta. Portanto, os parágrafos de abertura servem como uma espécie de resposta aos mais temerosos com o banho de sangue da quarta-feira.
Para resumir esse primeiro tema de hoje: i) não se preocupe tanto com variações diárias de seu portfólio, isso não é saudável; ii) como diriam os romanos, há dias fastos e dias nefastos – pregões de grandes quedas fazem parte do processo, mesmo nos maiores bull markets estruturais; e iii) está tudo como dantes no quartel de Abrantes: sigo otimista.
Prestado o devido esclarecimento, posso falar de coisas menos momentâneas e mais “frias”. Se o encontro descrito até aqui foi totalmente real, as próximas linhas são um mero devaneio do “interlocutor”, uma espécie de sonho em que marcianos invadem a Terra – as cervejas acabaram e os cigarros também!
No ápice da atividade onírica, naquele exato momento em que o núcleo geniculado lateral do tálamo estimula o R.E.M. e me sinto “loosing my religion”, fui levado para a evolução do mercado de minicontratos num planeta chamado Marte. Lá, tínhamos um grande cassino a céu aberto, em que a alavancagem do investidor chegava a níveis absurdos.
Nesse lugar totalmente hipotético, um investidor com depósito de 15 ou 25 reais conseguia abrir posição em minicontrato de Ibovespa ou Dólar. Na prática – lá nesse lugar imaginado –, era como se o investidor, com 25 reais, tomasse uma posição de 19 mil reais no mercado!
Claro que também neste planeta, mesmo estando sonhando, eu continuava um liberal e um defensor dos free markets. O cliente não é obrigado a aceitar toda a alavancagem que o regulador permite e a corretora oferece. Não mudo de ideia conforme as circunstâncias. Maaaaas, o ponto é que a alavancagem é vendida como uma vantagem ao investidor, que, supostamente, poderia ganhar muito dinheiro, colocando bem pouco. Enquanto isso, os riscos ficam escondidos na Sala da Justiça. Ao aplicar 15 ou 25 reais e se alavancar dessa forma, muitas vezes o investidor não sabe o tamanho de seu valor em risco. Nesse lugar sonhado, não tinha uma boa comunicação ao investidor.
E a coisa ficava muito, mas muito pior.
Segundo a regra de risco adotada pelas corretoras de Marte, caso o cliente tivesse perdas superiores a 70 por cento, sua operação era encerrada compulsoriamente. Na prática, isso correspondia a uma oscilação de menos de 100 pontos contra a posição; em um índice andando por seus 90 e tanto mil pontos, pouco mais de 0,10 por cento.
Quando eu, no sonho, imaginava que a sacanagem era pouca, vinha a sacanagem maior da coisa. Os 30 por cento de patrimônio remanescentes, ou seja, 7,50 reais, eram engolidos pela corretagem compulsória cobrada quando havia o stop do cliente, 3,50 reais por contrato, 15 por cento da margem exigida, cuidadosamente calculado para que os outros 15 por cento restantes cobrissem os emolumentos da nota.
Se, no planeta Terra, as chances de uma pessoa física sobreviver ao day trade já eram reduzidas, imagine neste lugar sonhado, com essa alavancagem de 760x.
Em um jogo binário, com margem de erro mínima, o jogo das corretoras em Marte teria virado o de ganhar dinheiro stopando seus clientes, travestindo isso de uma suposta revolução da corretagem zero, quando, na realidade, estariam na prática operando contra os clientes.
Quanto mais o cliente fosse rodando a roda, mais ele chegaria próximo à distribuição gaussiana de probabilidade e ficaria mais próximo de seu stop, e, consequentemente, de entregar 15 por cento de sua margem para a corretora como multa pela zeragem compulsória. A corretora marciana representaria a banca do cassino. O investidor seria sua contraparte. E, claro, ninguém – a não ser o Ed Thorp e sua turma – quer jogar contra a banca.
Encerro a salada mista de hoje com um comentário sobre coluna publicada no jornal Valor de título: “Qual o cisne negro da sua companhia? Identifique o cisne negro da sua empresa”.
Há um erro elementar aqui e receio que as pessoas se orientem a partir disso. Por definição, cisnes negros são imprevisíveis; não são apenas eventos considerados raros e de alto impacto. Não são os fatores de risco mapeáveis, os conhecidos. São os fatores de risco que sequer conseguimos conceber como possibilidade. Falar “quais são os cisnes negros” ex-ante é uma contradição em termos. Se você pode identificar qual o fator de risco, então está diante de um cisne cinza, não de um cisne negro. Isso muda bastante o jogo. Riscos conhecidos versus desconhecidos. Falamos dos “unknown unknowns” de Donald Rumsfeld. Se você não entendeu esse ponto, não entendeu nada sobre cisnes negros.
Se uma pessoa não domina uma prática ou uma teoria, não deveria falar ou escrever sobre ela. Não saber não tem problema algum. Uma de minhas metas de 2019 é dizer mais “eu não sei”. Como diria Taleb, curiosamente o mais famoso difusor das ideias dos cisnes negros, o problema do mundo são as pessoas que sabem, mas que não sabem o suficiente.
Isso muda por completo sua gestão de risco. Como você não consegue mapear os cisnes negros, os eventos realmente com potencial de serem problemáticos para sua empresa (ou sua vida pessoal ou sua carteira de investimentos), não consegue se preparar para esse fator de risco específico. Então, você se posiciona de tal forma a tentar se proteger de qualquer potencial quadro negativo no futuro, não para se blindar de uma ou outra situação particular. O desafio não é entender o mundo e seus cisnes negros – eles são mesmo ininteligíveis. O desafio é viver num mundo que não entendemos. Tal como escrita, a coluna em questão é um mapa errado. E, de novo citando Taleb, não ter mapa é melhor do que ter um mapa errado.