Uma crise silenciosa: o problema alimentar mundial
Um dos eventos mais emblemáticos do século 21 é a Guerra Russo-Ucraniana, marcada mais recentemente pela invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022. A situação desencadeou uma série de efeitos ao redor do mundo em diferentes mercados, mas talvez o mais afetado seja justamente o segmento das commodities.
Muito se fala sobre o petróleo e o gás natural, mas um dos mais profundos desdobramentos do conflito, na verdade, se dá sobre o mercado de commodities agrícolas — a Rússia e a Ucrânia são grandes produtores de commodities agrícolas, tais como trigo e milho —, que já enfrentava problemas mesmo antes de a invasão começar.
Em 2021, por exemplo, o número de pessoas na fase três ou acima no parâmetro de insegurança alimentar atingiu um número recorde de cerca de 193 milhões, quase o dobro do total de 2016.
Consequentemente, o percentual populacional analisado também apresentou considerável evolução no mesmo período, de 11,3% em 2016 para 21,3% no ano passado (crescimento em termos absolutos e relativos).
Como podemos ver abaixo, os problemas se concentraram na África e no Oriente Médio.
Em termos sociais, o sistema alimentar global está relacionado com o tema da pobreza em todo o mundo. Dois terços da população mundial que vive em extrema pobreza, ou 740 milhões de pessoas, são trabalhadores agrícolas e seus dependentes. São problemáticas, portanto, relacionadas e capazes de gerar fortes atritos ao redor do globo.
De maneira geral, três fatores já justificavam a crise alimentar ao redor do mundo. A começar pelo choque energético causado pelo fim da pandemia e a reabertura econômica. Isso porque a realidade pós-pandêmica proporcionou uma considerável elevação da demanda em meio à fragmentada cadeia de suprimentos, pressionando os preços e prejudicando os agricultores.
Em segundo lugar, o aperto monetário iniciado no ano passado em diferentes regiões do mundo e aprofundado em 2022 já deteriorava as condições creditícias globais, tornando mais difícil para agricultores e demais players do setor tomarem crédito de maneira consistente e saudável (até o BCB, tido como flexível, elevou em 50 pontos-base a taxa de juros) — falta de investimentos gera escassez de projetos de expansão da capacidade.
Por fim, vivemos uma realidade na qual os problemas relacionados com a mudança climática já começam a afetar diversas comunidades expostas aos climas extremos, como secas duradouras, chuvas extremas e geadas severas, entre outros.
Para ilustrar, grandes produtores de trigo já reportaram os piores rendimentos de colheita da história, enquanto os focos de incêndio em meio à onda de calor na Europa também são prejudiciais.
As mudanças climáticas terão um impacto devastador na produção de alimentos, reduzindo a disponibilidade, aumentando os preços e, por sua vez, reduzindo a segurança alimentar global. Outras questões, incluindo estresse hídrico, poluição da água, e conservação do solo, também dependem da transformação do sistema alimentar.
Os sistemas climáticos, alimentares e socioeconômicos (política, comportamento do consumidor, economia), bem como os recursos envolvidos (água, solo, terra), estão interligados. A segurança alimentar, que afeta diretamente o bem-estar humano, é a principal resultado do sistema alimentar, e é indiretamente afetado pelos outros sistemas.
Neste sentido, a invasão da Ucrânia, por sua vez, só piorou ainda mais as coisas.
O motivo?
A guerra não apenas afeta a disponibilidade de algumas commodities (por exemplo, trigo e óleo vegetal), mas também afeta os preços da energia que indiretamente afeta os preços dos alimentos, como indicamos acima.
Em outras palavras, juntas, a Rússia e a Ucrânia representam cerca de 12% de todas as calorias exportadas globalmente (estima-se que a Ucrânia seja capaz de prover calorias para 400 milhões de pessoas). Como não poderia deixar de ser, um movimento que afetasse as duas economias teria efeitos alimentares globais.
A seguir, observe a representatividade dos dois países no fornecimento de calorias.
O problema é que tais questões geopolíticas devem continuar a pressionar as cadeias de fornecimento de alimentos existentes, sem solução fácil de curto prazo.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), por exemplo, declarou recentemente a probabilidade de o conflito se estender por anos, tornando difícil imaginar uma cadeia de suprimentos estável para commodities agrícolas – diante de um verão e um inverno intensos, entendo ser difícil para o conflito durar muito, mas o cenário não é impossível.
Da mesma forma, é difícil prever o fim das sanções contra a Rússia, o que deve continuar a criar atritos para suas exportações de alimentos. Consequentemente, os preços devem continuar subindo — segundo dados da FAO, os preços dos alimentos aumentaram 66% desde o início da pandemia de Covid-19 e 12% desde o início da invasão russa à Ucrânia.
Se os preços dos alimentos continuarem a subir, o custo dos alimentos em alguns países africanos poderia saltar de 20% da renda disponível para 35% até 2023. Os números podem não ser tão ruins em outras regiões, mas ainda são preocupantes, com destaque para a América Latina, que deverá chegar próximo de 20% da renda disponível em 2023.
Segurança alimentar significa que todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico, social e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos. Embora a segurança alimentar tenha sido historicamente uma das principais prioridades de muitos governos, ao longo de 2022 sua importância aumentou devido ao conflito na Ucrânia.
Adicionalmente, o aumento dos preços dos alimentos representa riscos multifacetados, incluindo instabilidade política e social nos países mais pobres, sem falar no impacto econômico nos países mais ricos (inflação de alimentos reduz renda disponível para ser gasta em outros bens e serviços, pressionando potencial de crescimento econômico). Com isso, vejo o aumento dos preços dos alimentos como um risco para a recuperação econômica global.
No final do dia, a questão alimentar faz parte de um desafio secular ainda maior às cadeias de suprimentos, relacionado com questões geopolíticas.
As tendências de inversão da globalização e a mudança para um mundo “multipolar” estão forçando possíveis mudanças drásticas na indústria, onde as empresas, por necessidade de segurança da cadeia de suprimentos e conformidade com políticas públicas, investirão na diversificação geográfica.
Sim, é uma questão extremamente complexa.
Isso porque o sistema alimentar global tem muitos vetores e é menos consolidado do que outros segmentos. Somente a indústria agrícola consiste em mais de 600 milhões de fazendas e emprega 874 milhões de pessoas ou 27% da força de trabalho global.
Existem centenas de empresas que fornecem os insumos necessários para o setor agrícola, incluindo fertilizantes, sementes e maquinário, além de dezenas de comerciantes, milhares de fabricantes e processadores de alimentos, milhões de varejistas de alimentos e bilhões de consumidores. Governos, bancos e instituições acadêmicas também estão na cadeia de desenvolvimento. Pode ser tudo, menos trivial.
Ao menos tempo, o Brasil pode ter uma oportunidade nesse contexto.
Veja, essas transições que citei anteriormente podem ser caras e ter consequências não intencionais à medida que evoluem, claro. Contudo, elas também geram espaços de desenvolvimento para as empresas e países que serão chamados a construir e abrigar novas cadeias de suprimentos.
As fileiras de países profundamente dependentes da importação de alimentos estão crescendo. Assim, embora os preços dos alimentos tenham caído em relação aos recordes recentes, os preços ainda estão mais altos do que em qualquer outro momento desde 1974, gerando possíveis pressões econômicas e sociais para 2022 e 2023.
Contudo, os impactos dos preços elevados dos alimentos são dramaticamente diferentes em nível internacional, com alguns países até se beneficiando, como Brasil (em termos sociais, entretanto, o dano é predominantemente negativo para todos, uma vez que a inflação impede o consumo).
Por isso, o Brasil tem fundamental relevância para a dinâmica que começa a se formar, dado que o país é o terceiro maior exportador mundial de produtos do agronegócio, fornecendo de maneira regular e confiável alimentos para o mundo.
A longo prazo, será interessante se posicionar em nomes que se beneficiam do desenvolvimento da cadeia produtiva no país. Tudo isso, claro, feito sob o devido dimensionamento das posições, conforme seu perfil de risco, e a devida diversificação de carteira, com as respectivas proteções associadas.
Money Times é Top 10 em Investimentos!
É com grande prazer que compartilhamos com você, nosso leitor, que o Money Times foi certificado como uma das 10 maiores iniciativas brasileiras no Universo Digital em Investimentos. Por votação aberta e de um grupo de especialistas, o Prêmio iBest definirá os três melhores na categoria de 2022. Se você conta com o nosso conteúdo para cuidar dos seus investimentos e se manter sempre bem-informado, VOTE AQUI!