Thinking outside the box

“Sur” Real ou Surreal? Entenda o motivo pelo qual o “peso-real” do Mercosul não vai sair do papel

27 jan 2023, 19:31 - atualizado em 27 jan 2023, 19:31
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“São necessárias inúmeras etapas de harmonização de políticas fiscal e cambial entre os países, movimento do qual não estamos nem próximos com a união alfandegária do Mercosul“, coloca (Imagem: Unsplash/Gustavo Sánchez)

Os investidores, os portais de notícias e as redes sociais passaram por um momento de histeria coletiva depois que uma notícia cheia de equívocos foi veiculada por um grande jornal estrangeiro sobre a criação de uma moeda entre Brasil e Argentina. O ruído chamou a atenção de gente importante, uma vez que é um absurdo bem grande.

O problema é que a história foi contada e espalhada da maneira errada.

A ideia de uma moeda compartilhada não é nova e já teve entre seus defensores, inclusive, o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, que a chamava de “peso-real”. O que foi discutido entre os dois países difere disso.

Comentado agora pelo governo atual e pelas autoridades argentinas, o projeto se trata, na verdade, não da utilização de uma moeda única latino-americana, nos moldes do euro, mas, sim, de uma moeda virtual para ser usada bilateralmente em transações financeiras e comerciais dos países.

Ou seja, seria algo utilizado paralelamente ao peso argentino e o real brasileiro, como uma moeda comum, e não um fator de substituição, como uma moeda única.

“Ah, mas começa assim mesmo e depois avança”, você pode argumentar.

Na verdade, não, não começa não.

Em primeiro lugar, o que foi colocado é o início de um estudo colaborativo de viabilidade econômica, não um preparo propriamente dito, como foi ventilado no fim de semana.

O pano de fundo seria o experimento de 2008, após a crise do subprime, onde a Argentina e o Brasil adotaram trocas nas moedas de origem, por conta da volatilidade internacional do dólar a época.

De maneira similar, o objetivo do estudo, somente iniciado, é o de identificar alguma chance de mitigar os efeitos da volatilidade e desvalorização do peso argentino, diante da inflação galopante do país.

Adicionalmente, haveria um certo tipo de eficiência na falta de taxas bancárias e melhor transparência na comparação entre bens comercializados entre os países.

Como se trata de um parceiro comercial relevante do Brasil, a situação monetária do vizinho atrapalha os controles comerciais. Não há, portanto, uma essência de união monetária, apesar do alinhamento entre os governos.

Em segundo lugar, mesmo uma união monetária como a da zona do euro precisou de mais de três décadas para sair do papel.

Imaginem o tempo necessário para realizar o mesmo experimento na América Latina, com tantos problemas nos dois países e perante uma exacerbada volatilidade e polarização política.

São necessárias inúmeras etapas de harmonização de políticas fiscal e cambial entre os países, movimento do qual não estamos nem próximos com a união alfandegária do Mercosul. Sem falar nas instituições supranacionais e em algum conjunto de leis em comum.

Por isso, quando muito, tratamos aqui não de uma moeda nacional, mas um veículo que minimize as dificuldades de aceitação do peso no mercado internacional, como uma espécie de “clearing” (serviço de compensação e liquidação de ordens de compra e venda eletrônicas) para mercado BrasilArgentina, dado que a restrição de dólar pode prejudicar o comércio com Argentina ou outros países.

O que nos traz ao terceiro ponto, que é a falta de viabilidade política. Não apenas o assunto parece não ter unanimidade no próprio governo (a frente ampla de Lula é composta por partidos frontalmente contrários à ideia), como também haveria uma oposição muito forte em Brasília como um todo, em especial a partir de fevereiro, com o novo Congresso mais à direita do que o atual proporcionando uma oposição mais ferrenha.

Em outras palavras, portanto, a iniciativa morre na praia quando olhamos para o futuro.

Não é uma prioridade e, consequentemente, não haveria razão para o governo gastar munição com a temática, considerando outros temas econômicos mais relevantes, como o novo arcabouço fiscal de Rogério Ceron, secretário do Tesouro, e a reforma tributária de Bernard Appy, secretário especial de reforma tributária.

A retórica parece que só se tornou mais evidente por conta da viagem do presidente Lula aos vizinhos nesta semana, começando com a própria Argentina, que está visivelmente usando a bandeira para fins eleitorais, uma vez que há eleição presidencial neste ano (vide a felicidade de Alberto Fernández com a presença de Lula no país).

Por outro lado, considerando que se trata da primeira viagem internacional de Lula e que o atual presidente vê no chefe de estado argentino um amigo, ficaria muito difícil simplesmente desmentir a situação toda do dia para a noite.

Adicionalmente aos pontos já expostos, a proposta acaba tocando diversos problemas econômicos. Ocorre que, ao entrar em uma união monetária, os países membros devem ter uma combinação de flexibilidade e simetrias de forma que atendam aos critérios propostos pelo modelo de Mundell Fleming, o que não é o caso:

  • a diferença da taxa de juros entre os dois países é enorme, impossibilitando uma política monetária que acomode as duas condições (primeiro gráfico abaixo); e
  • a diferença deriva da inflação argentina (segundo gráfico); seria uma idiotice para o Brasil financiar a redução de prêmio de risco da dívida da Argentina.

Dessa forma, tirando o mal-estar para os agentes de mercado e para o próprio governo brasileiro criado pela entrevista para o Financial Times do ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, não temos muito com que nos preocupar. Pelo menos temos boas piadas sobre o nome da moeda: ao invés de “Sur” ou “peso-real”, gosto de Surreal.

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