Opinião

Sidnei Nehme: na economia, nem tudo o que se ouve e se lê é o que se vê

24 out 2020, 17:24 - atualizado em 24 out 2020, 17:26
Dólar
O dólar então mantém o preço tóxico no nosso mercado de câmbio com um viés latente de alta, por vezes não bem percebido (Imagem: Pixabay)

As perspectivas contendo incertezas e muitas dúvidas face ao “corner” em que o governo está envolvido, qual seja, tem necessidade de manter programas assistenciais à população carente, que na realidade foram os grandes fomentadores de recursos para o consumo ao longo dos últimos 7 ou 8 meses de convívio com a pandemia do coronavírus, e o quase impedimento de continuidade face ao agravamento da crise fiscal que faz presente a possibilidade de rompimento do teto orçamentário, sustentam o viés de alta da moeda americana no nosso mercado.

Esta intranquilidade presente e a falta de opções estratégicas que não envolvam compensações com restrições de outros benefícios presentes na economia para poder atender a premente necessidade de continuidade dos programas, afeta as perspectivas mais imediatas e, por que não, as de médio e longo prazo, de recuperação da atividade econômica, embora seja perceptível que há uma “caixa de ressonância” direcionada a propagar o otimismo.

Então o que se observa é pressão sobre o juro, o que dificulta a rolagem da Divida Publica por parte do governo afetando os custos dos diversos instrumentos que utiliza para tal, impondo relevante mudança do perfil temporal da divida pelo encurtamento de prazos, e há falta de papéis outros que expressem reserva de valor para a postura defensiva dos investidores, e como consequência, restam a alternativa do dólar, nas suas várias possibilidades de acesso no mercado financeiro nacional e até exterior, para os investidores mais elitizados e empresas, afora o hedge tradicional, e o mercado imobiliário que convive com um “boom”, visto ser no momento a “nova poupança” defensiva da classe média.

O dólar então mantém o preço tóxico no nosso mercado de câmbio com um viés latente de alta, por vezes não bem percebido, tendo em vista que o dólar sofre depreciação no mercado externo face as expectativas no entorno de novo programa americano de recursos focando impulsionar a atividade econômica americana deprimida com a crise do coronavírus.

A moeda americana tem mantido preço resistente no nosso mercado, em torno de R$ 5,60, mas está com viés muito mais tendente a R$ 6,00 do que a R$ 5,30, basta o fator antagônico à pressão interna arrefecer no exterior deixando de deprimir o dólar no mercado internacional.

E este fato contamina toda a cadeia produtiva brasileira, em especial a de produtos alimentícios onde as altas são soberbas como “finalmente” captadas pelo IPCA-15 como óleo de soja com alta de 65,1%, afora feijão, arroz, carne, tomate, etc… e que repercutiu com modestos 0,94%, mas mesmo assim a maior taxa para o mês de outubro em 25 anos.

Evidentemente, a percepção popular é de inflação muito mais intensa e avassaladora na renda dos trabalhadores, sendo crescente a desconfiança de prática de “matemágica” na apuração final do que se considera inflação, miscigenando um complexo rol de outros itens não tão relevantes ou não relevantes para atenuar a expressividade objetiva do processo inflacionário já instalado no país.

A moeda americana tem mantido preço resistente no nosso mercado, em torno de R$ 5,60, mas está com viés muito mais tendente a R$ 6,00 do que a R$ 5,30 (Imagem: Pixabay)

A dicotomia entre IGP-M e IPCA pela expressividade deixa latente este fato.

O desemprego, embora se propague a recuperação gradual do emprego, enuncia recorde em setembro com 13,5 milhões de desempregados, algo como 3,4 milhões a mais do que em maio, equivalente a aumento de 33,1%. A taxa de desemprego no país data base setembro é de 14%.

O desalento é crescente na busca de novas oportunidades no mercado de trabalho.

Os shoppings e o comércio em geral ainda evidenciam aumento de lojas vagas e a retomada é lenta, e, ainda assim, há organismos que minimizam os impactos que poderão advir efetivamente com a redução dos programas assistenciais às classes menos favorecidas, o que sinaliza percepção pouco assertiva.

Enfim, poderíamos ficar aqui enumerando uma enormidade de itens entre os quais a percepção do fato concreto apresenta dicotomia com o fato anunciado.

Os shoppings e o comércio em geral ainda evidenciam aumento de lojas vagas e a retomada é lenta (Imagem: REUTERS/Adrees Latif)

Então, a síntese é efetivamente: “nem tudo o que se ouve e se lê é o que se vê !”, por isso a postura defensiva efetiva e até psicológica impacta no preço da moeda americana no nosso mercado de câmbio, sustentando o viés de alta, e leva o mercado imobiliário a um novo “boom” com moradias de todos os tamanhos e preços.

O país não tem riscos na questão cambial visto dispor de consistentes reservas cambiais e sofisticados mecanismos que permitem o BC suprir o mercado caso ocorra demanda legitima, razão pela qual o CDS se situa no entorno de 210 pontos e poderia ser até mais baixo, pois o Brasil é credor liquido em moeda estrangeira, mas a questão fiscal e o fraco desempenho da economia impõem posturas defensivas e, como porto seguro, o preço do dólar sofre pressão.