Sem testes e com “apagão de dados”, Brasil fica no escuro para lidar com Ômicron
Brasileiros com sintomas da Covid-19 têm enfrentado longas filas em unidades de saúde em busca de testes de coronavírus, enquanto os relatos de pessoas com suspeitas da doença voltaram a dominar as conversas no país, mas um “apagão de dados” do governo federal não tem refletido o real avanço da variante Ômicron, alertaram especialistas.
Sem uma política eficiente de testagem em massa desde o início da pandemia, o Brasil se vê agora em uma situação ainda mais complicada de escassez de testes mediante a alta capacidade de transmissão da Ômicron, a nova variante do vírus que tem levado vários países do mundo a bater seguidos recordes de novos casos de Covid-19.
Além da falta de testes, os sistemas de informações do Ministério da Saúde apresentam instabilidade desde que a pasta foi alvo de um ataque hacker em 10 de dezembro, o que tem prejudicado o registro de novos casos por parte das secretarias estaduais de saúde.
“O sistema geral de registros é ruim desde o começo, piorou com o ataque hacker, então nós estamos mesmo submergidos”, disse o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Estamos no escuro.”
Apesar de ser o terceiro país do mundo com mais casos e mais mortes por Covid-19, o Brasil é o lugar da América do Sul que menos testa seus cidadãos para a doença, segundo dados compilados pelo site Our World in Data, excluindo Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, que não divulgam os números.
Em uma média dos últimos sete dias, o país realizou 0,23 teste da doença por 1 mil pessoas. A título de comparação, a Argentina aplicou no período 2,15 testes por 1 mil pessoas e o Uruguai, país campeão em testagem na região, fez 3,88 testes para cada 1 mil habitantes.
A dificuldade de se encontrar um teste na rede pública leva muitos brasileiros a buscar em farmácias, mas a procura explodiu no período de virada de ano e muitos locais ficaram sem estoque, uma vez que a demanda era baixa até então pela redução no número de casos nos meses anteriores com o avanço da vacinação.
Como os sintomas da Ômicron são mais fracos, na maioria dos casos, muitas pessoas melhoram antes mesmo de serem testadas e de fazerem o isolamento que seria necessário, de acordo com especialistas.
“A gente acende o sinal de alerta, essa movimentação que as pessoas estão tendo no final do ano sem uma política de educação sanitária complica ainda mais a situação. Muito provavelmente a gente vai ver um aumento no número de casos agora no início do ano”, disse o pesquisador em saúde pública Diego Xavier, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Mesmo com a subnotificação, os casos de Covid-19 já têm aumentando neste início de ano. No Rio de Janeiro, por exemplo, a média movel diária de casos em 7 dias saltou mais de 2.000%, passando para 398 na segunda-feira ante 18 em 17 de dezembro.
A média móvel nacional não está disponível para consulta, uma vez que o painel do Ministério da Saúde sobre a Covid-19 segue fora do ar desde o ataque hacker de dezembro, em que os invasores tiraram as páginas da pasta do ar em troca de um pedido de resgate financeiro.
“Nós estamos vendo sim um aumento do número de casos muito expressivo no dia a dia lidando com as pessoas, com os pacientes. Isso foi visto em todos os lugares onde se detectou a expansão da Ômicron. É um vírus que tem características bem diferentes, se transmite muito fácil e não necessariamente para causar uma doença leve ou uma infecção sem sintomas respeita a presença de imunidade prévia, quer seja pessoa que já teve Covid, quer seja pessoas que já foram imunizadas”, disse Ésper Kallas, médico infectologista e professor da USP.
Questionado sobre o impacto do ataque hackers no acompanhamento da pandemia, o Ministério da Saúde não respondeu. No fim de dezembro, o ministro Marcelo Queiroga negou que a pasta tenha ficado no escuro, garantindo que os dados são recebidos pelo ministério, apenas não estavam públicos.
O site do Ministério da Saúde que deveria divulgar diariamente os novos números de casos e mortes da doença voltou ao ar esta semana, mas com números atualizados apenas até 9 de dezembro — véspera da invasão cibernética.
Além da testagem insuficiente, o Brasil não consegue acompanhar adequadamente o avanço da Ômicron devido à baixa capacidade de análise genômica do vírus.
Segundo o Ministério da Saúde, apenas 265 casos da variante foram confirmados no país — ao contrário do restante do mundo, onde a Ômicron se tornou dominante em poucos dias e tem provocado avalanches de casos.
Desde o início da pandemia o Brasil sequenciou apenas 92.383 genomas do vírus, em um universo de mais de 22,3 milhões de casos confirmados, de acordo com dados da Rede Genômia Fiocruz. No Reino Unido, com 18,8 milhões de infecções confirmadas, foram analisados os genomas de mais de 1,8 milhão de amostras.
“O Brasil nunca investiu nem numa política de testagem, nem em testagem por amostragem, nem em vigilância genômica. Chegamos a pagar o mico de a variante que surgiu no Brasil ser detectada do outro lado do mundo, no Japão, porque a gente não monitora decentemente as variantes”, disse o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, lembrando a variante Gama, originada em Manaus mas descoberta por pesquisadores japoneses no início do ano passado.
Os especialistas ressaltaram que a boa notícia em relação à Ômicron é que a variante não tem provocado tantas mortes nos outros países como as anteriores, o que também deve ocorrer no Brasil, em especial pelo avanço da vacinação contra a Covid-19. Quase 65% da população brasileira está vacinada com as duas doses e está em andamento a aplicação da dose de reforço, apontada como crucial para deter a Ômicron.