SAF: os desafios de governança, transparência e identidade dentro e fora de campo
Por Lucca Mendes* e Gladson Pereira**
A construção histórica do que hoje se entende por empresas enquanto organizações a partir de contratos de sociedade foi influenciada por uma série de tentativas de obter resultados que atendessem aos interesses e necessidades de cada época. A partir daí, originaram-se desde estruturas mais simples, como a das Associações Civis, até estruturas mais complexas, como a das Sociedades Anônimas.
Historicamente, os Clubes de Futebol no Brasil se estruturaram no primeiro formato, das associações civis. Porém, atualmente, é crescente a discussão em torno das Sociedades Anônimas de Futebol (SAF).
Por vezes essa diversidade de realidades colocou na balança jurídica e social valores contraditórios. Em um contexto mais recente, leva-se em conta perspectivas distintas.
É o caso da proteção aos credores e da livre pactuação entre agentes econômicos autônomos em um mercado dinâmico. De certa forma, a questão ecoa na discussão atual acerca da SAF.
O mesmo pode se dizer em relação às previsões contidas nos 36 artigos da Lei nº 14.193/2021, que incluiu a figura da SAF no Ordenamento Jurídico brasileiro. No entanto, persistem polêmicas pontuais, como o caso da limitação de investimentos das SAFs em sociedades estrangeiras.
SAF e os desafios
De forma mais ampla, a discussão se dá, de um lado, a partir da posição quase unânime de que pautas de governança, responsabilidade de gestão, transparência e equalização do passivo dos clubes devem ser priorizadas. De outro, considera-se a possibilidade de perda da identidade e do valor cultural existente em torno dos clubes e da prática esportiva, ao assumir feição empresarial.
A saída para esse possível dilema, com o qual a lei não foi silente e contribui para mitigá-lo, será objeto de muitas discussões nas organizações que façam opção pela adoção do novo regramento jurídico, instituído em 2021. Nesse sentido, para além de uma série de divergências práticas, centradas em pontos específicos das inovações previstas na legislação, torna-se ainda mais relevante ter noção prévia de alguns elementos que antecedem tais reflexões e podem servir como guias interpretativos.
O primeiro deles é a vinculação da criação da SAF. Trata-se de um subtipo da Sociedade Anônima, disciplinada pela Lei nº 6.404/76, que se refere a uma finalidade específica de realizar a prática do futebol, em razão da relevância enquanto fenômeno cultural e considerando a repercussão econômica e social. Isso porque gera empregos diretos e indiretos, além de movimentar indústrias de bens de consumo e de prestação de serviços, como pontuado ao longo da tramitação do projeto de lei que culminou na Lei nº 14.193/2021.
O segundo deles é a dependência da figura do acionista controlador a elementos que transcendem ao objeto social da SAF, em sentido estrito, e a realização de uma pretensão econômica. Ou seja, o poder exercido pelo controlador ocorrerá nos limites da Lei das SAFs, mas também da Lei nº 6.404/76, que prevê o dever do acionista controlador em cumprir a função social da empresa para os demais acionistas, os que nela trabalham e para a comunidade em que atua.
SAF: as interpretações dentro e fora do campo
O primeiro guia interpretativo, relacionado aos motivos para a criação de um regramento especial para os Clubes de Futebol, mostra que a orientação da gestão deverá estar direcionada à continuidade e expansão da prática esportiva. Assim, quando a orientação empresarial fugir ou atentar a esse escopo, estará prejudicada a aplicação das garantias da nova legislação.
Já o segundo guia interpretativo, enquanto dever do acionista controlador em respeitar a função social da empresa e a relevância para uma determinada comunidade, ganha especial relevância diante das SAFs. A saber, o reconhecimento prévio de que a SAF existe em razão de uma relevância cultural, que alcança uma comunidade e deve cumprir com uma “função social”, por vezes de difícil definição em outras Sociedades Anônimas.
Súmula do jogo
Portanto, a transição de uma Associação Civil para uma Sociedade Anônima de Futebol deve estar orientada à manutenção e expansão da prática esportiva. Ao fazer assim, respeita-se as boas práticas de governança e transparência, típica das estruturas empresariais profissionalizadas.
Além disso, atua-se sem prescindir da consideração dos impactos da tomada de decisão em uma comunidade que guarda relação afetiva com um clube. Aliás, isso está intimamente ligado à própria criação e justificativa do regramento jurídico das SAFs – e que portanto não poderá ser abandonada.
Tal vinculação, entendida como um dos pontos transversais de toda a nova legislação, gera desafios gerenciais que vão além de uma análise jurídica. Casos recentes, como os do Cruzeiro Esporte Clube e Botafogo de Futebol e Regatas, já demonstram que a pressão popular e pública alcança as SAFs e seus acionistas controladores. Aliás, eles também são cobrados pelo desempenho e resultados dentro de campo.
Neste contexto, é fundamental um efetivo investimento no ajuste das expectativas entre potenciais acionistas/investidores ou já controladores com os clubes e todos aqueles alcançados pela tradição. Afinal, será por meio da transparência o caminho para que todos os envolvidos possam ter o melhor ambiente.
Só assim será possível conciliar os objetivos específicos de todas as partes interessadas, dentro e fora de campo. Isso inclui troféus, reforma de estádios, centros de treinamento, reorganização de dívidas e, também, retorno sobre o investimento.
*Lucca Mendes: advogado empresarial e Mestre em gestão de negócios. Sócio-fundador e administrador do escritório Mendes Advocacia, responsável pela área cível e empresarial.
**Gladson Pereira Américo Filho: Advogado na Mendes Advocacia. Mestrando em Direito e Desenvolvimento da Amazônia pela UFPA. Graduado em Direito pela UFPA.