Rodolfo Amstalden: Tenho um sonho que se repete toda noite
Dias atrás, chegou até mim a chance de conversar com um dos produtores nacionais de contêineres.
No espírito do que o Felipe diz — de que não trabalhamos como analistas, mas somos analistas o tempo inteiro —, perguntei a ele como havia sido 2020 para os negócios.
O sujeito ficou um pouco encabulado antes de responder.
Como intróito, fez questão de explicitar que alguns de seus familiares mais próximos foram seriamente debilitados pela Covid, neutralizando quaisquer impressões positivas sobre o ano passado.
Reclamou da absurda demora para começar a vacinação por aqui — “em Israel eu já estaria vacinado duas vezes”.
E só depois se sentiu à vontade para descrever o histórico corporativo, inesperadamente formidável.
“Me sinto até mal por isso, sabe? É claro que eu jamais poderia ter desejado um ano assim, mas a verdade é que não lembro de outra época em que eu tenha faturado tanto e com tão boas margens.”
Aproveitei para perguntar também quais eram suas expectativas para os próximos meses, e soube que não eram ruins.
“Olha, não sou besta de achar que vou repetir 2020 em 2021. Por tudo o que está acontecendo, espero que não mesmo! Preço dos insumos subiu forte, já afeta minha margem, sabe? Mas começo a ver uns sinais de economia se recuperando, tô desconfiado que vai ser um ano bom.”
Num exercício irresponsável de indução, arrisco-me a extrair uma heurística mais geral a partir desse diálogo bastante específico.
Nos recentes movimentos do mercado, forma-se a impressão maniqueísta de um “stay at home” colocado sempre em oposição aos casos beneficiados pelo fim do isolamento.
Seguindo essa ótica simplista, tudo aquilo que subiu em 2020 deve ser corrigido de agora em diante.
Contudo, conforme vemos pelo relato verbal supracitado, trata-se de uma ilação precipitada.
Parte daquilo que subiu em 2020 tem plenos fundamentos para continuar subindo em 2021, por motivos semelhantes ou diferentes.
Ir bem em 2020 não é um pecado, e não cobra penitência em 2021.
No exemplo que eu julgo mais emblemático, pergunto:
Por que a forte demanda residencial — fomentada em tempos de isolamento — haveria de ser prejudicada pela abertura social e econômica?
Se a Selic vier a subir, não subirá tanto. Definitivamente, não subirá a ponto de retroceder com a mudança paradigmática do financiamento imobiliário no Brasil.
E famílias com mais renda disponível sempre significaram algo de bom para as incorporadoras.
Felizmente, algumas coisas funcionam com ou sem Covid, funcionam antes de dormir e depois de acordar.
Nessa última noite, sonhei que acordava sozinho, dentro de um contêiner.
Eu batia nas paredes, pedindo ajuda para sair dali, mas ninguém me ouvia, e o barulho das batidas só servia para me ensurdecer.
Resolvi parar de bater. Não havia nada a ganhar com todo aquele barulho ecoado, e um pouco a perder para os meus tímpanos já cansados.
Em silêncio, passei a prestar atenção nas cargas depositadas dentro do contêiner.
Eram todas cargas perecíveis.
De pronto, não consegui evitar o desespero de morrer abraçado com toneladas de matéria orgânica podre.
Com sorte, porém, recobrei a razão. Supostamente, aquelas cargas valiam muito e precisariam ser entregues em breve, ou se tornariam inúteis para os seus compradores.
Essa constatação me deu certa tranquilidade para esperar pelo momento — de provável iminência — em que eu sairia dali.