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Rodolfo Amstalden: O paradoxo da merda e do diamante

30 set 2021, 11:52 - atualizado em 30 set 2021, 11:52
“Sentimo-nos tranquilos e felizes ao desembolsar montantes que podem variar de R$ 1 a US$ 1 trilhão por valores que sejam 100% intangíveis” diz o colunista.

Breve digressão de teoria do valor sob a perspectiva moderna.

Um delicioso sorvete de morango com uma minúscula gotícula de merda em sua cobertura ainda continua sendo um sorvete de morango?

Ou vira um sorvete de merda?

A analogia, muito útil para questionar modelos de valuation por soma das partes, remete ao conceito de “minority rule”.

Em determinadas situações, a coexistência de uma amostra minoritária, mesmo que ínfima, basta para alterar radicalmente a dinâmica do todo.

Mas peço desculpas em meio ao seu café da manhã. Vamos para outro exemplo, menos escatológico, associado às obras de arte.

Colecionadores de arte são capazes de pagar qualquer tipo de soma por uma pintura icônica, a despeito de os insumos básicos usados em um quadro terem um custo praticamente desprezível.

Se você interpelar um colecionador e chamá-lo de idiota por ter pago US$ 5 milhões em uma tela preenchida por tinta e envolta por pedaços de madeira, ele vai rir da sua cara. Socialmente, ele estará certo e você estará errado.

No entanto, a coisa muda de figura se estivermos analisando o caso da escultura do rosto de uma deusa egípcia contendo um pequeno pedaço de diamante no meio da testa.

Automaticamente, a escultura em questão negociará sob um múltiplo aderente ao preço da gramatura de diamante ali evidenciada.

De alguma forma, o detalhe em diamante faz com que abandonemos o romantismo puro da arte e adentremos uma feira mercante.

Sentimo-nos tranquilos e felizes ao desembolsar montantes que podem variar de R$ 1 a US$ 1 trilhão por valores que sejam 100% intangíveis.

Porém, a partir do momento em que se misturam aspectos qualitativos com referências quantitativas, o pragmatismo do mundo objetivo acaba roubando nossa atenção.

Enquanto estivermos investindo em um ativo que escapa completamente dos modelos de avaliação por fluxos intertemporais, esse ativo poderá valer qualquer coisa: desde R$ 1 até US$ 1 trilhão.

A partir do momento em que tal ativo, por qualquer que seja o motivo, se enquadrar minimamente no arcabouço de um fluxo de caixa descontado, grudando um lindo diamante em sua própria testa, o romance do intangível estará acabado.

Eis o paradoxo moderno: a perpetuidade só existe em seu ápice — potencialmente infinita — na medida em que não pode ser calculada. Quando puder ser calculada, assumirá um valor modesto e comportado, tornando-se desinteressante aos apreciadores da boa arte.

Ironicamente, portanto, o pico do valuation de um determinado ativo não está no presente e nem no futuro, mas sim em algum ponto intermediário entre o hoje e o amanhã, um ponto de não convergência.

Se os unicórnios quiserem continuar subindo, melhor manterem distância segura da cerca que os separa do pasto dos cavalos.

O mesmo conselho cabe às moedas digitais — que sejam felizes enquanto forem capazes de evitar analogias estritas com as moedas tradicionais.

Toda obra ficcional é um grande choque de realidade.