Reinaldo Rabelo: exchanges e os novos marketplaces financeiros
Desde que a revolução digital deu espaço às fintechs, uma caixa de opções foi aberta no setor financeiro e, hoje, não é mais possível indicar com clareza o que é um banco, uma corretora e até mesmo uma bolsa de valores.
As agências físicas quase não fazem mais sentido, principalmente depois que a migração para a internet foi acelerada e obrigatória em virtude do afastamento social trazido pela COVID-19 — agora, cerca de três quartos das transações bancárias são feitas pelos canais digitais.
No mundo dos investimentos, há tempos plataformas servem de interface para aquisição de ações, valores mobiliários e ativos financeiros.
Para todos aqueles que não trabalham diretamente no mercado de capitais, a bolsa de valores é sinônimo de “home broker” porque a nova geração de investidores, que invadiu o mercado, nunca viu operadores se empurrando no pregão.
Todavia, essa mudança estava mais para uma digitalização de processos existentes do que para uma verdadeira evolução. Era uma inovação incremental, diferente do atual momento, em que supermercados estão virando bancos e lojas podem se tornar bolsas de valores.
Isso se deve, em parte, pela popularização quase que concomitante das plataformas digitais para compras de produtos e serviços comuns (marketplaces) com a de apps e “superapps” que oferecem serviços financeiros.
A experiência virtual tornou equivalentes, para fins de usabilidade, os serviços de e-commerce e de internet banking.
Não é por menos que algumas dessas startups financeiras têm se declarado como empresas de tecnologia.
Não querem ser confundidas com o modelo bancário antigo, que carrega, mais do que a imagem de burocracia, a pecha de cobrar altas taxas sem devolver um atendimento realmente focado no cliente.
A chegada das criptomoedas complicou ainda mais esse cenário.
O bitcoin (BTC) nasceu entre 2008 e 2009 como um meio de pagamento direto, sem necessidade de bancos ou quaisquer outros intermediários, prometendo o mundo “peer-to-peer” (ponto a ponto).
Com o tempo, acabou servindo melhor como reserva de valor: o ouro do ecossistema digital, o lastro de referência, o oráculo da interoperabilidade.
E para atender aos milhões de curiosos sobre esse ativo digital, surgiram as exchanges — marketplaces para negociação de criptomoedas. Essas empresas, ao contrário de outras, nasceram digitais e com o propósito de negociar ativos igualmente digitais.
A proposta era tão avançada que, sem maiores dificuldades, colocava em cheque a real finalidade do mercado de capitais e de sua infraestrutura desatualizada.
Com as ofertas iniciais de moeda (ICOs), empreendedores puderam validar a tese de captação global: um projeto poderia estar representado por criptomoedas, negociadas e custodiadas em qualquer lugar do mundo.
Naturalmente, essa simplicidade gerou reação de incumbentes estabelecidos no mercado de capitais, como também facilitou a multiplicação de gestores maliciosos que exploraram o protocolo para gerar tokens sem projetos reais — como ocorre com qualquer nova tecnologia que cria vantagem em relação a outros modelos.
Embora esses ataques e fraudes tenham provocado prejuízos ao ecossistema, ICOs serviram para validar a tecnologia, que segue sendo desenvolvida com mais cautela e melhor governança, buscando outros casos de aplicação, como a tokenização de ativos reais e direitos passíveis de cessão.
Essas iniciativas mais consistentes já podem ser vistas no Brasil, em iniciativas como a tokenização de valores mobiliários, pelo BTG Pactual (ReitBZ), e de contratos de cessão de direitos (precatórios e dívidas de consórcios), pela MB | Digital Assets.
Contudo, é no mercado americano que observamos esse ecossistema ganhar destaque, com reguladores mais ativos em estimular o desenvolvimento de inovação, competição e novos negócios, bem como a realização de investimentos por entidades institucionais e ações de grande impacto.
Nesse sentido, vale citar a atuação da Intercontinental Exchange Inc. (ICE) que, além de ser investidora na Coinbase (maior exchange dos EUA), criou a Bakkt, uma bolsa totalmente dedicada a criptoativos.
O fundador e CEO da ICE, Jeff Sprecher, é conhecido por sua capacidade de se antecipar ao mercado e criar novos modelos de negócios.
A própria ICE, hoje uma das maiores bolsas do mundo, cresceu em mercados pouco atendidos até comprar, em uma estratégia ousada, a Bolsa de Nova York (NYSE).
Agora, não apenas percebe o potencial das criptomoedas, como do ecossistema de ativos digitais como um todo. A experiência com o setor de criptoativos pode ter sido, inclusive, motivadora da mais recente ação da ICE, quando, no início de 2020, buscou construir uma negociação com a eBay.
De fato, cada vez mais, um banco, uma corretora, uma exchange, um e-commerce e mesmo uma bolsa se tornam entidades semelhantes: marketplaces com finalidades distintas, como Sprecher disse ao comentar o interesse na plataforma de comércio digital:
Embora nossos respectivos marketplaces atendam a diferentes bases de clientes, eles ainda são marketplaces e há muito a ser extraído de empresas semelhantes que operam em diferentes setores, diferentes regiões e diferentes verticais de clientes.
Esse conceito nos leva à ideia do marketplace financeiro.
Assim como atendem melhor aos consumidores, o desenvolvimento de plataformas para intermediar objetos, hospedagem, transportes e outros serviços, poderão servir na negociação de ativos de valor intrínseco, como os instrumentos financeiros, valores mobiliários e ativos alternativos (gênero onde se encontram as criptomoedas).
Portanto, as exchanges poderão evoluir para organizar, com melhor uso das tecnologias de base trazidas pelo bitcoin, o mercado de ativos digitais — nativos ou digitalizados.
Além das próprias criptomoedas e tokens, podem resolver, como fizeram os primeiros marketplaces com produtos e serviços, a relação de troca de bens entre pessoas.
Essa é a linha que vemos em algumas exchanges e que se tornou explícita quando Sprecher apresentou justificativas para a tentativa de aquisição do eBay:
Quando pensamos na existência de um mercado para milhas aéreas ou artigos (espadas e poderes) em um videogame, não estamos loucos. Nós não ficamos malucos. Sabemos o que nossa plataforma faz e como alavancá-la.
Em um momento de muitas mudanças regulatórias no ecossistema financeiro, com Banco Central construindo uma nova infraestrutura para o sistema de pagamentos, com o PIX e OpenBanking, com a CVM revisando inúmeras normas relacionadas aos intermediários do mercado de capitais, o mercado de criptoativos do Brasil pode encontrar seu lugar de destaque.
Reinaldo Rabelo é CEO do Mercado Bitcoin.