Criptomoedas

Receita Federal e Bitcoin: novas regras geram dúvidas e estimulam sonegação fiscal

17 maio 2019, 17:23 - atualizado em 17 maio 2019, 17:23
Já era esperada a ação do governo de criar regras para o mercado de ativos digitais para recolher impostos

Por Allex Ferreira, o Barão do Bitcoin

Instrução Normativa 1.888 da Receita Federal, publicada no dia 7 de maio de 2019, “institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB)”. Neste artigo, pretendo explicar as novas exigências do fisco brasileiro, analisar os possíveis desdobramentos que as regras poderão provocar no mercado nacional de ativos digitais e tecer algumas críticas construtivas à norma.

Já era esperada a ação do governo de criar regras para o mercado de ativos digitais para recolher impostos. Contudo, por se tratar de uma tecnologia tão revolucionária, que oferece centenas de potenciais aplicações, é necessário cautela na formatação das normas que regerão este mercado para não engessá-lo e atrapalhar a inovação, principalmente das pequenas e médias empresas que atuam neste ecossistema.

Ao que parece, a Receita Federal não entendeu a complexidade do Bitcoin. O texto proposto não faz distinção entre as diferentes funções do ativo digital. Para mim, não fica claro na Instrução Normativa quando devemos encarar o Bitcoin como um meio de pagamento, tecnologia de transferência de valores ou como investimento.

A pergunta que faço é por que a Receita optou por não fazer essas diferenciações? Será que foi por falta de conhecimento no assunto, pressa ou presunção?

Gosto de partir do pressuposto de que o Bitcoin e seus derivados são apenas versões digitalizadas do dinheiro em papel, pois trocam de mãos, em sua essência, sem a necessidade de intermediários. Porém, na prática, a necessidade de terceiros se torna quase sempre fundamental, principalmente no comércio, o que torna extremamente difícil a caracterização do Bitcoin em determinada operação podendo causar muita confusão nas interpretações.

Exagero de registros

Quando lemos a Instrução Normativa (IN) 1.888 da Receita Federal, como bem pontuou a advogada Helena Margarido, ficamos com a impressão de que o órgão fiscal brasileiro parte do pressuposto de que se alguém estiver usando Bitcoin ou qualquer criptoativo é porque quer esconder algo.

Não fica claro qual a real intenção da Receita com a publicação da norma. Será que o órgão quer apenas recolher impostos sobre eventuais ganhos de capital? Da maneira como a norma foi feita me dá a impressão de que existe outra motivação por trás. Se este não for o caso, então só posso acreditar que esta regra foi mal feita.

De qualquer forma, a Receita decidiu obrigar as exchanges de criptoativos a informar toda e qualquer transação realizada pelos seus clientes.

Ou seja, se João comprar 0,00000001 Bitcoin de Maria, a exchange dona da plataforma na qual esta negociação ocorreu precisará enviar à Receita, no final do mês subsequente à transação, um conjunto de oito informações relativas à operação, que são:

a) a data da operação;

b) o tipo da operação

c) os titulares da operação;

d) os criptoativos usados na operação;

e) a quantidade de criptoativos negociados, em unidades, até a décima casa decimal;

f) o valor da operação, em reais, excluídas as taxas de serviço cobradas para a execução da operação, quando houver;

g) o valor das taxas de serviços cobradas para a execução da operação, em reais, quando houver; e

h) o endereço da wallet de remessa e de recebimento.

Não vejo o menor sentido em se exigir que uma transação de valor tão insignificante seja incluída em um registro digital que será armazenado por vários anos. No final das contas, a Receita terá uma montanha de registros de transações inúteis.

Talvez a solução mais adequada teria sido criar uma regra parecida com aquela seguida pelas instituições bancárias no Brasil, ou seja, todas as operações ficariam registradas no sistema interno da empresa por determinado período de tempo e, de acordo com a necessidade e dentro dos limites da lei, as informações seriam repassadas à Receita.

Não consigo entender também por que a Receita não estipulou um limite mínimo mais racional para o registro de operações quando a transação ocorrer dentro de uma exchange. Será que a pessoa ou o grupo de pessoas que pensou nessa regra tem noção da quantidade de transações que podem ocorrer todos os meses nas plataformas de negociação de ativos digitais no Brasil? Na eventualidade de um novo “bull run” de preço do Bitcoin, este número poderia facilmente ultrapassar a casa de 1 milhão de operações mensais.

Se o objetivo principal da Receita é o de cruzar essas informações com aquelas inseridas pelos contribuintes nas declarações anuais de imposto de renda, talvez precisássemos de um mega sistema robusto que integrasse as exchanges com o sistema da Receita. É isso que eles estão planejando? Não me parece o caso.

É importante frisar também que algumas exchanges nacionais, principalmente as pequenas, enfrentarão dificuldades para adequar seus sistemas para cumprir as novas regras da Receita, que entram em vigor em agosto deste ano. Isso significará em mais custos que, em de alguma forma, serão repassados aos usuários, possivelmente encarecendo o preço do Bitcoin no Brasil.

Me pergunto também se o pessoal da Receita já ouviu falar das Exchanges Descentralizadas (DEX, na sigla em inglês). Como será que eles pretendem exigir que plataformas de negociação que não possuem entidades centrais de controle informem o que seus usuários negociaram no mês passado?

Mercado de Bitcoin com dinheiro em papel

Além da obrigação para as exchanges, a Receita também criou regra que obriga a prestação de informações por parte de pessoas físicas e jurídicas que negociarem, em um mês, mais de R$30 mil no mercado paralelo (peer-to-peer ou P2P) ou em exchange domiciliada fora do Brasil.

Diferentemente do caso das exchanges, para este tipo de público a Receita determinou um piso mínimo de negociação que pode ser considerado razoável. Me pergunto, contudo, porque não colocaram esse mínimo na mesma faixa de isenção de imposto de renda sobre ganho de capital, que é de R$35 mil de alienação mensal de ativos.

De qualquer forma, o foco da Receita neste ponto foi o de atingir os operadores P2P. Apesar de não dizer como pretende realizar a fiscalização se um usuário está ou não prestando as devidas informações, me parece óbvio pensar que a Receita pretende cruzar estes dados com as movimentações das contas bancárias. Mas e se esse pessoal deixar de operar com contas bancárias e criar um mercado paralelo de dinheiro físico com Bitcoin, como acontece na China e na Venezuela, será que o tiro da Receita não sairia pela culatra?

Um potencial problema social relativo a um eventual crescimento do mercado paralelo de dinheiro em papel para compra e venda de Bitcoin seria o aumento de golpes, roubos, sequestros e coisas do tipo no momento da efetivação deste tipo de transação.

A Receita não percebe que essa medida coloca em risco os próprios usuários de criptoativos? Não existe outra maneira de fazer isso sem expor a privacidade financeiro do usuário?

Já comentei em outro artigo que é bastante perigoso, do ponto de vista de segurança, para um usuário de Bitcoin declarar à Receita Federal ou a qualquer outro órgão qual a quantidade de Bitcoins que possui. Os criptoativos podem ser facilmente roubados por pessoas de má-fé de várias formas possíveis, inclusive por meio da força.

Fiscalização e multas insuficientes

De maneira geral, as novas regras encarecem as operações de quem atua nesse mercado. Ao fazer isso, é óbvio que os usuários buscarão maneiras mais baratas de operar e, tecnologicamente falando, o céu é o limite para encontrar essas soluções.

Eu acredito que o Fisco provavelmente não terá recursos humanos e técnicos suficientes para fiscalizar se todos os agentes deste mercado estão efetivamente prestando as devidas informações. Considerando ainda que as multas estipuladas pela IN 1.888 são relativamente baixas (para se ter ideia, a multa mais dura corresponde a no máximo 3% do total da operação), haverá enorme incentivo para quem atua neste mercado de tentar se esconder. Caso seja pego, a multa muito provavelmente compensará o custo evitado para a prestação de informações adequada.

É normal o governo brasileiro pensar em maneiras de criar regras para esse mercado de ativos digitais, mas não vai ser a partir de normas confusas, que geram dúvidas e incentivam a sonegação fiscal, que ele obterá os resultados esperados.

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