Agronegócio

Rastreabilidade na pecuária bovina e a lei antidesmatamento da UE: solução ou problema?

09 set 2024, 19:00 - atualizado em 09 set 2024, 18:38
pecuária união europeia
(iStock.com/Cleverson Nunes)

A rastreabilidade para a atividade pecuária está se tornando cada vez mais essencial, uma vez que as exigências para exportação e forma de consumo mais consciente do ponto de vista socioambiental é crescente no mundo.

Como, por exemplo, em 2023 o Parlamento Europeu adotou uma resolução ambiental de grande impacto para as exportações do Brasil, a Deforestation Regulation (EUDR).

A EUDR se trata de uma regulação que irá proibir, a partir de janeiro de 2025, a comercialização e importação de produtos agropecuários derivados da produção de gado, café, óleo de palma, madeira, borracha, soja e cacau em território europeu, oriundos de desmatamento ocorridos depois de 2020, para preservar florestas, biodiversidade e combater as mudanças climáticas – a União Europeia estabeleceu que esses produtos produzidos em áreas de florestas convertidas depois de 31 de dezembro de 2020, serão proibidos de ser comercializados.

Para aferir essa exigência, a norma exige que comerciantes e importadores submetam à autoridade pública competente:

  1. análise de risco;
  2. informações do produto, como: riscos do país de origem; áreas de florestas; presença de comunidades indígenas; degradação florestal
  3. histórico de crimes ambientais e não conformidade com critérios socioambientais, entre outros.

Neste mesmo sentido, o Reino Unido recentemente emendou sua lei ambiental (Environmental Act of 2021, Schedule 17) criando a sua versão de lei antidesmatamento. De forma breve, o Reino Unido também irá exigir que os produtos agropecuários importados para o seu mercado comprovem, por meio de auditoria, regularização ambiental e rastreabilidade.

Rastreabilidade na pecuária e regularização do CAR

No quesito de rastreabilidade, hoje a Guia de Transporte Animal (GTA) é um documento obrigatório em território brasileiro para o transporte do animal, junto ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), com o propósito de atestar a origem e segurança sanitária do animal. O transporte irregular de animais, sem apresentação de GTA, caracteriza crime ambiental, segundo a Lei Federal 9.605/1998.

Entretanto, a GTA apresenta problemas quanto à rastreabilidade do individual e completa do animal, principalmente com a regularização ambiental das propriedades por qual passou. A GTA somente consegue demonstrar um transporte/deslocamento do animal de um ponto a outro, não dispõe de identificação individual do animal de forma completa por todas as fazendas que o animal passou.

Nesse sentido, o Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina (SISBOV), criado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) tem o propósito de ser um sistema de rastreabilidade e identificação individual dos animais, visando à exportação para o mercado europeu, suprindo os limites da GTA.

Entretanto, diferente da GTA, a adesão ao SISBOV é voluntária. Essa participação voluntária é realizada por meio de anuência/concordância do interessado e a forma de identificação individual do animal deve ser feita com o uso de pelo menos 1 brinco auricular padrão SISBOV. Todos esses dados devem ser cadastrados no sistema do SISBOV para controle oficial.

Mas para a EUDR, essa rastreabilidade individual do animal é somente metade do caminho. Deveremos comprovar que esse animal não teve origem em imóveis rurais que sofreram desmatamento. Para isso será necessário cruzar os dados da rastreabilidade individual do animal com os dados ambientais dos imóveis rurais pelos quais ele passou ao longo da sua vida até o abate.

Neste quesito, o Brasil conta com o Cadastro Ambiental Rural (CAR), em que o produtor já informa ao órgão competente o status ambiental da sua propriedade, identificando possíveis déficits de áreas de preservação permanente (APP) e/ou de Reserva Legal (RL), bem como áreas de uso consolidadas, com a respectiva geolocalização – alguns pontos exigidos pela EUDR. Ou seja, o CAR tem o potencial de ser um instrumento útil.

Porém, o CAR necessita estar com as suas informações validadas pelos órgãos ambientais. Neste sentido, a validação do CAR continua um grande gargalo, com quase todos os estados do Brasil, exceto São Paulo com 92%, Espírito Santo e Pará com 70% de análise concluída

Neste ponto, voltando para a rastreabilidade, a despeito do SISBOV trabalhar com identificação individual (i.e., brinco auricular bovino), demonstrando dados de toda a vida do animal e todos os estabelecimentos rurais por onde o animal passou, o SISBOV não endereça o cruzamento com os dados do CAR.

A GTA tem uma limitação muito maior já que não tem a capacidade de traçar todo o deslocamento do animal durante a sua vida. Com isso, aqui três grandes desafios se apresentam: expandir nacionalmente o escopo do SISBOV, o qual hoje é voluntário; validar os dados ambientais dos imóveis rurais no CAR; e cruzar os dados desses dois sistemas, atestando a regularidade ambiental do rebanho bovino brasileiro.

Adicionalmente esse necessário cruzamento das agendas de rastreabilidade animal, com a de regularização ambiental dos imóveis, até o momento, nos textos regulatórios do SISBOV e da GTA, está omisso. Em nível estadual, o único estado que está desenhando/apontando uma solução para este problema é o Pará.

Pará na vanguarda da rastreabilidade

O Pará começou a trabalhar uma agenda de rastreabilidade individual de animais faz pouco tempo. A iniciativa estadual foi lançada durante a 28ª Conferência das Partes da Convenção Quadro Clima das Nações Unidas em Dubai, com o Programa de Integridade e Desenvolvimento da Cadeia Produtiva da Pecuária de Bovídeos Paraenses, criando o Sistema Oficial de Rastreabilidade Bovídea Individual do estado do Pará (SRBIPA), no Decreto estadual 3.533/2023.

Com relação ao GTA e ao CAR, o Decreto criando o SRBIPA não os menciona diretamente, mas segundo as suas diretrizes, é provável que o SRBIPA faça cruzamento desses dados.

No que se referte à regularidade ambiental das propriedades rurais, o decreto menciona expressamente que o SRBIPA busca “garantia da regularização fundiária e socioambiental relativa ao rebanho”, também “integração com demais políticas estaduais e federais voltadas para a agropecuária de baixas emissões de gases de efeitos estufa, preservação ambiental, sustentabilidade e clima.”

Nesse sentido, apesar do estado do Pará ainda estar em fase inicial do seu sistema de rastreabilidade animal individual, até o momento, é o único que deixa de forma expressa, como diretriz do programa, o vínculo e a ligação com dados ambientais do CAR e das obrigações do Código Florestal inerentes das propriedades rurais pertencentes à cadeia de pecuária do estado.

Dessa forma, será essencial que o Brasil não somente consiga solucionar os gargalos referentes tanto à rastreabilidade individual animal, como a validação dos dados ambientais dos imóveis rurais, mas que cruze ambos os dados. Só por meio da sincronização das agendas de rastreabilidade individual com a de regularização ambiental, conseguiremos tornar nossos produtos pecuários competitivos para o comércio internacional. Para isso, será necessário empenho, caso contrário a rastreabilidade ao invés de ser solução, será mais um problema.

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Advogado e pesquisador do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas. Doutor e Master of Laws em Direito Ambiental pela Pace University School of Law, Mestre em Direito dos Negócios na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGVLaw).
leonardo.munhoz@autor.moneytimes.com.br
Advogado e pesquisador do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas. Doutor e Master of Laws em Direito Ambiental pela Pace University School of Law, Mestre em Direito dos Negócios na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGVLaw).
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