Infraestrutura

Questão indígena gera impasse para projeto da Ferrogrão

25 out 2020, 12:02 - atualizado em 23 out 2020, 11:57
Indígenas das etnias pataxó e tupinambás
A expectativa de investimento na concessão, que vai cortar áreas de florestas na região amazônica, é de vários bilhões de reais, e atrai interesse das principais tradings do setor de grãos do Brasis (Imagem: Reuters/Adriano Machado)

Um questionamento apresentado esta semana pelo Ministério Público Federal (MPF) e por organizações da sociedade civil ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre uma consulta a indígenas tem o potencial de paralisar o projeto de concessão da ferrovia Ferrogrão, uma das principais apostas do Brasil para escoar importante fatia da produção agrícola e de outros insumos.

Com mais de 900 quilômetros, a ferrovia foi projetada para levar produtos agrícolas do Centro-Oeste até os canais de exportação ao norte do país, assim como seria importante modal para a importação de fertilizantes e derivados de petróleo.

A expectativa de investimento na concessão, que vai cortar áreas de florestas na região amazônica, é de vários bilhões de reais, e atrai interesse das principais tradings do setor de grãos do Brasil.

“Todos (os indígenas) estão contra porque não fomos consultados sobre como vai ser esse plano, a gente não teve conhecimento de estudos ambientais”, disse Beptuk Metuktire, índio da etnia Kayapó e neto do famoso cacique Raoni, à Reuters.

A Ferrogrão também deverá aliviar o tráfego de caminhões na BR-163, em trecho no Pará que foi alvo de protestos de indígenas da etnia Kayapó em agosto –o bloqueio, que teve o projeto da ferrovia com um dos motivos, prejudicou o transporte de grãos.

No mais recente movimento, o MPF pediu ao TCU a proibição da licitação da Ferrogrão, que ligará o norte do Mato Grosso a Itaituba, nas margens do rio Tapajós, no Pará, até que o governo consulte previamente povos indígenas sobre se concordam com o empreendimento.

Em dezembro de 2017, o então presidente da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Alexandre Porto, assegurou em audiência pública que o governo iria obedecer uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exigiria um consentimento de comunidades tradicionais acerca dos efeitos da ferrovia, segundo o Ministério Público, ao citar que posteriormente isso foi reiterado em documento do processo de concessão.

Contudo, segundo o MPF, as consultas nunca foram realizadas, havendo até uma recusa para assim proceder. No dia 13 de julho, o governo enviou ao TCU para análise do processo de concessão da Ferrogrão para publicação do edital.

Metuktire afirmou que há mais de três anos o governo planeja essa ferrovia, e que a linha férrea vai afetar índios e também caminhoneiros, que terão o fluxo de transporte de cargas reduzido na BR-163. Ele disse que já houve reunião e carta repudiando o plano do governo.

“Nós estamos fazendo a nossa parte de defender os nossos direitos, mas o que está faltando muito é ter diálogo com as autoridades, deputados e outras pessoas”, disse.

O procurador da República Felipe de Moura Palha e Silva, um dos que subscrevem a representação ao TCU, disse à Reuters que a grande controvérsia que existe é sobre o momento de realização da consulta às comunidades tradicionais que serão eventualmente afetadas pelo empreendimento.

Segundo o procurador, a consulta tem de ser feita ainda na fase de planejamento para que os povos indígenas possam influenciar no projeto –ou até mesmo contestar a sua viabilidade. A instituição menciona que a obra pode impactar 48 territórios de povos indígenas.

“Nesta fase prévia, é que devem ser discutidas com os povos, realizada a consulta prévia para que esses custos de eventuais compensações ambientais e de comunidades ambientais sejam levados em conta, porque da forma como se está sendo feito o risco está sendo empurrado para a frente, com risco grande de quem tenha que assumir isso no futuro seja a União”, disse ele, ao lembrar que isso ocorreu em obras anteriores no país.

Procurado por meio de sua assessoria de imprensa, o TCU disse que o pedido do MPF é objeto de um processo sob relatoria do ministro Aroldo Cedraz e que ainda não foi apreciado pelo tribunal.

Em nota, também por meio da assessoria de imprensa, o Ministério da Infraestrutura rebateu o MPF e enfatizou que não se recusa a consultar os povos afetados, como alega a Procuradoria da República.

Segundo o ministério, a “consulta a povos indígenas será realizada durante a fase de licenciamento ambiental do empreendimento”, também citando previsão da OIT.

“No entanto, a pandemia da Covid-19 tornou a consulta presencial aos povos indígenas um desafio, uma vez que o acesso às terras indígenas está proibido por questões sanitárias. Para contornar essa dificuldade, o Ministério da Infraestrutura e a EPL (Empresa de Planejamento e Logística) estão estudando junto à Funai a forma de realizar a consulta diante das restrições.

O ministério disse ainda que a ferrovia “não corta ou margeia” nenhuma terra indígena.

Disse que há povos indígenas, como os Munduruku, que serão ouvidos no âmbito do processo de licenciamento.

Segundo o ministério, as terras indígenas Mekrangnotie e Baú, pertencentes ao povo Kayapó e Panará, possuem distância da Ferrogrão bem acima dos limites estabelecidos pela Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015, sendo que o ponto mais próximo está a aproximadamente 30 km de distância.

Precedentes

Por ora, o impasse sobre o momento da consulta dos indígenas, está colocado. Segundo o representante do MPF, não há um posicionamento final do judiciário brasileiro sobre quando a consulta deve ser feita, seja de cortes superiores, seja do próprio TCU sobre o assunto.

O procurador da República afirmou que há precedentes do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), corte de segunda instância que abrange Estados que serão cortados pela ferrovia, favoráveis a se ouvir comunidades tradicionais na fase de planejamento.

Disse também que recentemente o Tribunal de Contas do Estado do Pará decidiu nesse mesmo sentido ao analisar o caso da Ferrovia Paraense (Fepasa).

Felipe de Moura Palha e Silva rechaçou a alegação de que o MPF é contra a obra. Disse que a instituição nunca é contra empreendimentos de desenvolvimento, mas quer evitar que o custo e o impacto da obra sejam posteriormente maiores do que o necessário, e o retorno ao país aquém do esperado, citando o exemplo da usina hidrelétrica de Belo Monte (Pará), que enfrentou vários obstáculos para começar a operar.

“A gente quer que regras sejam obedecidas e que a população não pague um preço e que grupos econômicos não sejam privilegiados. Queremos desenvolvimento para todo o povo”, disse.

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