Saúde

Quem vai fazer o milagre? Na contramão, Brasil antecipa discussão sobre afrouxar isolamento

03 maio 2020, 13:00 - atualizado em 03 maio 2020, 15:14
Coronavírus
Nesta semana o país registrou um novo recorde de mortes em 24 horas, com 474, na terça-feira, totalizando 5.017 óbitos em consequência da doença (Imagem: REUTERS/Bruno Kelly)

Ao mesmo tempo que o Brasil caminha para viver cenas vistas pelo mundo, com salto nos casos de coronavírus, dificuldades para enterrar corpos e serviços de saúde exauridos, os sinais da estratégia para deter a pandemia vão na contramão do recomendado por especialistas.

O presidente Jair Bolsonaro, contrário ao isolamento e minimizando mortes, diz que não pode fazer milagre, e o novo ministro da Saúde ainda avalia a melhor estratégia.

Com mais mortes por coronavírus que a China, o Brasil ruma para se tornar um dos países mais afetados pela pandemia de Covid-19.

Nesta semana o país registrou um novo recorde de mortes em 24 horas, com 474, na terça-feira, totalizando 5.017 óbitos em consequência da doença.

A China, primeiro país afetado pelo novo coronavírus, tem 4.633 mortes confirmadas oficialmente.

“Não estou entendo o começo dessa flexibilização, porque de fato o que a gente percebe é ainda uma carência de estrutura, uma carência de profissionais, porque não basta ter o respirador, você precisa de alguém que saiba operar”, disse o médico Jairo Alencar, plantonista de terapia intensiva em um hospital particular do Estado do Rio de Janeiro.

Pouco mais de um mês depois da adoção das primeiras medidas de isolamento social para tentar conter a disseminação da doença, governos estaduais começam a falar no fim das medidas mais restritivas –conforme defendido por Bolsonaro–, mesmo com indícios de que a contaminação avança e com os sistemas de saúde próximos da lotação.

“E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?”, disse Jair Messias Bolsonaro, quando perguntado sobre o recorde de mortes no país. “Eu sou Messias, mas não faço milagre”, afirmou.

“Vamos nos preparar para a retomada, o problema está aí, apertaram demais”, acrescentou o presidente na noite de terça-feira. Pouco antes, seu ministro da Saúde, Nelson Teich, reconhecia pela primeira vez o agravamento da situação, mas ressaltou ser localizado e não fez nenhuma referência às medidas de isolamento ou formas de conter a doença.

O Brasil está atrás apenas dos EUA e países europeus duramente atingidos, como Espanha, Itália e França, que também discutem a saída do isolamento — no entanto, ao contrário do Brasil, somente após terem passado pelo pior da doença.

Imagens de Santa Catarina, um dos primeiros Estados a acabar com a maior parte das medidas de isolamento, correram o país.

Uma multidão –incluindo idosos, que fazem parte do grupo de risco– se aglomerava na entrada de um shopping na cidade de Blumenau.

Nelson Teich
Teich prometeu apresentar nesta semana as diretrizes para auxiliar Estados a decidirem sobre o fim do isolamento (Imagem: REUTERS/Ueslei Marcelino)

Quatro dias depois da reabertura, o número de casos saltou mais de 70%, subindo de 98 no dia 22 para 167 no dia 26, de acordo com dados da própria prefeitura. Com uma ocupação de menos de 20% dos leitos de UTI reservados para casos de Covid-19, o Estado decidiu liberar shoppings, lojas de rua e academias, entre outros negócios, e a disseminação foi inevitável.

Apesar do exemplo catarinense, o novo ministro da Saúde, que assumiu o cargo após crise entre Bolsonaro e o então ministro Luiz Henrique Mandetta –que contrariava o presidente ao defender publicamente o isolamento–, prometeu apresentar nesta semana as diretrizes para auxiliar Estados a decidirem sobre o fim do isolamento.

Mesmo com a ressalva de que diversas variáveis serão levadas em consideração e que não será tomada nenhuma “medida intempestiva”, as discussões acontecem antes de o país chegar ao período de pico das internações por doenças respiratórias, que tradicionalmente ocorre no final de maio, e ante Estados já com suas redes de saúde enfrentando dificuldades.

“Ainda haverá muitos casos e muitas mortes, infelizmente”, disse à Reuters o infectologista Edimilson Migowski, professor da Universidade Federal do Rio Janeiro.

“O provável ocorreu: falta de profissionais, equipamentos, leitos e respiradores.”

Levantamento da Reuters com os governos estaduais feito no fim da semana passada apontou que, entre 21 Estados que responderam aos pedidos de informação sobre a situação dos leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), 11 estavam com mais de 50% de ocupação, sendo que três –Amazonas, Ceará e Pernambuco– já atingiram 100% de ocupação nos últimos dias.

Especificamente em Manaus, primeira capital a declarar o esgotamento de seu sistema de saúde devido à Covid-19, a média de sepultamentos chegou a 100 por dia– ante média de 30 antes da pandemia– e as autoridades chegaram a realizar sepultamento em camada.

Apesar do cenário, pelo menos 13 Estados já tomaram medidas para relaxar o isolamento ou planejam fazê-lo nas próximas semanas, pressionados principalmente pela situação econômica, mas também diante das falas insistentes de Bolsonaro criticando as quarentenas e responsabilizando os governadores pelos empregos perdidos.

O Estado de São Paulo, que ainda concentra sozinho mais de um terço dos casos confirmados, tem ocupados 81% dos leitos de UTI da área metropolitana da capital e 70% dos leitos de enfermaria dedicados à Covid-19.

Ainda assim, nas próximas duas semanas, anunciou o governador João Doria (PSDB), o governo prepara um plano para começar uma saída controlada do isolamento.

Coronavírus - Rio de Janeiro
Apesar de o governador ter recuado e mantido o isolamento, a adesão no Rio de Janeiro caiu na última semana (Imagem: REUTERS/Pilar Olivares)

“Vamos levar em conta situações locais, regionais e os setores que possam retornar a economia com as devidas medidas de proteção”, afirmou o governador, que tem alertado que o afrouxamento só será implementado se o índice de adesão ao isolamento social ficar acima de 50% — o que não tem ocorrido na Grande SP.

Orla carioca

Da mesma forma, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), já começou avaliações sobre liberar gradualmente as atividades econômicas no Estado. Há uma semana chegou a discutir essa possibilidade, mas voltou atrás.

Com 97% das UTIs ocupadas na zona metropolitana do Rio, e mais de 70% no Estado, o Rio de Janeiro já dá sinais de esgotamento do sistema de saúde e sofre com uma fila de pessoas à espera de leitos.

Apesar de o governador ter recuado e mantido o isolamento, a adesão no Rio de Janeiro caiu na última semana. No domingo, de acordo com levantamento feito pela plataforma InLoco, estava em 60,8%, mas durante os dias úteis se manteve em torno de 50%.

Mesmo em dias de semana a orla da capital fluminense tem ficado cheia de pessoas. Ao mesmo tempo, o Rio já acumula 8.500 casos de Covid-19 e 738 mortes.

Em meio ao avanço das discussões sobre o afrouxamento, o apoio da população ao isolamento social amplo caiu 8 pontos percentuais no Brasil desde o início do mês e atingiu 52%, de acordo com pesquisa do Datafolha divulgados nesta quarta-feira pelo jornal Folha de S.Paulo.

Ceará, Pernambuco e Amazonas, Estados que já estão muito próximos do colapso total do sistema de saúde, aparecem entre os que não têm previsão de reabertura do comércio. Em todos eles, de acordo com a InLoco, o índice de isolamento está em torno de 60%.

Porém, em quase todos os demais Estados com decretos determinando algum tipo de isolamento, as medidas expiram nos primeiros dias de maio.

“Isolamento inteligente”

A necessidade de retomar atividade econômica foi o centro das preocupações de Bolsonaro desde o início da epidemia, e um dos seus principais embates com o ex-ministro Mandetta, até levar à sua demissão.

Sem qualquer evidência científica, Bolsonaro já defendeu um “isolamento vertical”, em que apenas pessoas do grupo de risco ficariam confinadas. Classificou o coronavírus como uma “gripezinha” e atacou duramente governadores como Doria e Witzel, a quem acusa de querer seu lugar em 2022.

Coronavírus
Médicos que trabalham na linha de frente em UTIs relatam um aumento exponencial de demandas nos locais mais afetados pelo coronavírus, (Imagem: REUTERS/Roosevelt Cassio)

Ao escolher Teich como seu novo ministro, Bolsonaro teve como principal requisito alguém que lhe dissesse que poderia haver outra solução que não fosse o isolamento.

Mesmo longe ainda do controle da epidemia, Teich já tratou como um de seus principais assuntos as diretrizes para os Estados voltarem à normalidade. O plano ainda não foi finalizado, mas Teich foi chamado para assumir o cargo ao mostrar ao presidente a possibilidade de um “isolamento inteligente”.

“O afastamento é uma medida absolutamente natural e lógica na largada, mas ele não pode não estar acompanhado de um programa de saída, isso é o que a gente vai desenhar”, afirmou o ministro logo ao assumir, acrescentando não haver ainda um “crescimento explosivo” da doença no país — apesar do aumento dos registros de casos e mortes.

“Caos instaurado”

Quase duas semanas após ter assumido o cargo, Teich ainda não apresentou um plano de ação e tem se limitado a dizer, em entrevistas coletivas bastante protocolares, que são necessários mais dados para avaliar a situação da pandemia.

Médicos que trabalham na linha de frente em UTIs relatam um aumento exponencial de demandas nos locais mais afetados pelo coronavírus, que expõe um problema já crônico no país de baixo número de leitos e serviços insuficientes.

Profissionais de saúde temem que a possibilidade de afrouxamento do isolamento social aumente ainda mais a pressão sobre o sistema.

“O caos está instaurado, infelizmente”, afirmou o médico plantonista de UTI Jairo Alencar.

Um desafio a mais representado pela Covid-19 é o processo de entubação, onde há risco de contaminação de toda a equipe de saúde. Apenas na cidade São Paulo, mais de 3 mil profissionais de saúde já foram afastados do trabalho por síndromes gripais, reduzindo uma mão de obra essencial no combate à doença.

Para minimizar o riscos, as entubações passaram a ser realizadas pela chamada sequência rápida, que, no entanto, é mais delicada e apresenta maiores riscos para os pacientes.

“É muito mais complexo. Se você não entubar o paciente em 45 segundos o coração dele para”, disse o médio Rafael Deucher, presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Paraná (Sotipa) e membro da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).

Levantamento da Associação Paulista de Medicina com profissionais de todo o país apontou que apenas 15,5% dos entrevistados se consideram capacitados para atender casos suspeitos e confirmados de Covid-19 em qualquer fase da doença, inclusive quando graves, sob tratamento intensivo.

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A situação tem impedido o país de atender à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o enfrentamento à pandemia, de forma a identificar, isolar e tratar as pessoas infectadas (Imagem: Wikimedia Commons)

Para 74,5% dos 2.312 entrevistados, faltarão médicos para o combate à doença e assistência aos brasileiros, e mais de 90% disseram que não foram submetidos a qualquer teste para detectar Covid-19, ressaltando outro problema no enfrentamento à doença.

Apesar de ter previsão de realizar 46 milhões de testes, apenas 181 mil tinham sido concluídos até 22 de abril, e outros 158 mil ainda aguardavam resultado, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na segunda-feira.

A situação tem impedido o país de atender à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o enfrentamento à pandemia, de forma a identificar, isolar e tratar as pessoas infectadas.

Depois de produzir cerca de 60 mil testes em março, a Fundação Oswaldo Cruz promete produzir no mês de abril 1,2 milhão de testes, dobrando para 2,4 milhões em maio.

A carência de testes ainda aponta para outro problema, a subnotificação de casos, o que pode significar uma quadro ainda pior do que está desenhado atualmente no país.

“O pico ainda não chegou, e se seguir esse comportamento social, infelizmente, vamos ter uma piora de casos, casos graves e óbitos“, disse à Reuters o Secretário de Saúde do Rio de Janeiro, Edmar Santos.

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