Opinião

Qual é a propriedade exclusiva do Bitcoin? Nenhuma

26 set 2018, 18:18 - atualizado em 26 set 2018, 18:18

Por Allex Ferreira, o Barão do Bitcoin

Especialmente para quem está no mercado de Bitcoin há algum tempo, soa esquisito ouvir que o Bitcoin não possui qualquer propriedade única e exclusiva. Mas o fato é que realmente ele não tem.

Recentemente, incitei o debate em torno dessa questão em dois grupos de discussão no Facebook ao perguntar “qual seria a propriedade única do Bitcoin que o dinheiro fiduciário e/ou ouro não possuem?”. Dezenas de pessoas responderam, mas nenhuma delas foi capaz de apontar, sem relativizar, qual seria a propriedade singular da tecnologia criada por Satoshi Nakamoto.

Como veremos ao longo deste artigo, existem alternativas de sistemas de pagamento ou de bens monetários que compartilham pelo menos uma das características do Bitcoin. Ou seja, fundamentalmente, o Bitcoin não nos oferece nada novo, exceto quando combinamos duas ou mais de suas propriedades.

Vamos analisar abaixo algumas das supostas propriedades únicas do Bitcoin que foram apontadas por membros dos grupos do Facebook Bitcoin Blockchain, cujo qual sou moderador, e do Cointimes, que até pouco tempo era o grupo da corretora Foxbit:

  • Descentralização: a rede do Bitcoin não é a única descentralizada, existem outras, como as redes Mesh, a BitTorrent e podemos, inclusive, dizer que até o mesmo o ouro é descentralizado, pois não possui um dono ou órgão governamental/regulador que controle a sua emissão.
  • Divisibilidade: o Bitcoin é divisível até um certo limite, no caso a oitava casa decimal, assim como o ouro e o dinheiro eletrônico também são divisíveis até determinado limite.
  • Transações baratas: essa é uma característica relativa. Se você quiser enviar atualmente US$0,1 com Bitcoin, você provavelmente gastará mais em taxas do que o valor a ser transacionado. Existem alternativas centralizadas que propiciam para certas pessoas o envio de valores tão baixos como 10 centavos de dólar a custo zero, como ocorre entre usuários do PayPal, por exemplo.
  • Transações rápidas: novamente, estamos diante de uma questão relativa. Um cidadão com uma conta bancária em Portugal é capaz de enviar dinheiro instantaneamente para outro cidadão europeu. Podemos citar ainda alternativas como o WeChat, o AliPay, Apple Pay etc. Com o Bitcoin, ele precisará esperar pelo menos cerca de 10 minutos para obter a primeira confirmação da rede.
  • Transações seguras: o usuário não está seguro, além da impossibilidade de reverter uma transação caso algum usuário tenha cometido um erro de digitação, a rede do Bitcoin está suscetível a um ataque malicioso por parte de terceiros. Apesar deste ataque ser bastante improvável, não podemos considerar a rede do Bitcoin como 100% segura, o que por consequência não lhe confere o título de única rede do mundo completamente segura. De novo, estamos diante de uma questão relativa, que não pode ser apontada como propriedade única do Bitcoin.
  • Regra inflacionária decrescente: o ouro também possui esta característica.
  • Portabilidade: se desconsiderarmos a relativização da quantidade em questão, o ouro e o dinheiro também são portáteis.
  • Custo de custódia: o dinheiro em espécie e ouro também podem ter custo de custódia igual a zero.
  • Custódia do ativo (posse): o fato do usuário fazer a própria custódia do Bitcoin também pode ser existente no caso do ouro e, na maioria dos casos, do dinheiro em espécie. Afinal, a nota de R$50 na sua carteira está sob sua posse.
  • Sistema peer-to-peer (P2P): o sistema de negociação com dinheiro em espécie também é P2P.
  • Escassez: o ouro também é escasso.
  • Resistência à censura e ao confisco: o dinheiro em espécie e o ouro também possuem características de resistência à censura e ao confisco.

Eu poderia continuar colocando aqui outras respostas que são variantes dessas que foram dadas pelos membros dos grupos, mas prefiro parar por aqui, porque não parece ser tão difícil de aceitar que o Bitcoin não possui sequer uma propriedade que lhe seja realmente única.

Agora, o que acontece quando combinamos o fato de o Bitcoin ser uma tecnologia de transferência eletrônica de valores que possui propriedades de resistência à censura e que, em determinadas situações e períodos, oferece custos de transação relativamente baixos?

Eis que encontramos a grande proposição de utilidade deste ativo digital. Ou seja, sozinhas, essas características não nos concedem nada que outras alternativas não poderiam nos oferecer. Contudo, quando combinadas podemos chegar a casos de uso muito interessantes, apesar de muitas vezes serem questionáveis do ponto de vista legal.

Vejamos quais seriam esses casos de uso, segundo um relatório da Bitmex, plataforma de negociação de derivativos de Bitcoin, publicado no final do ano passado:

[ Esses recursos de resistência à censura são às vezes associados a atividades ilegais,

o chamado mercado negro [black market] ou mercado cinza [grey market]. Embora haja, claro, muitos casos de uso legítimos para resistência à censura — por exemplo, a falta de confiança na contraparte de uma transação ou os altos custos associados à execução de pagamentos em várias jurisdições.

Usos no mercado negro podem incluir evasão fiscal, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas ilegais, serviços sexuais, venda de armas ilegais, suborno e crimes em geral. Os usos do mercado cinza podem ser bens e serviços legais comercializados de maneira irregular. As transações no mercado cinza podem incluir:

• remessa para ou de um país que impõe alguma forma de controle de capital;

• um indivíduo sujeito à opressão política que restringe o uso de seus fundos;

• compra de produtos ou serviços de um preço mais baixo ou região alternativa sem o consentimento do regulador, fabricante ou prestador de serviços, como produtos farmacêuticos, eletrônicos ou assinatura de serviços de mídia

• doações para uma causa politicamente sensível;

• a venda de veículos sem o devido registro;

• a venda não autorizada de material protegido por direitos autorais, como livros didáticos;

• software ou conteúdo digital vendido sem a licença legalmente reconhecida;

• transações não autorizadas em ações e participações no mercado de balcão;

• participação em jogos de azar online ou poker sem cumprir com as regulamentações

necessárias;

• venda de ingressos de shows e eventos que violem os termos impressos no ingresso;

• venda de pontos de fidelidade de companhias aéreas no mercado secundário;

• usar sistemas de e-commerce online ou sistemas de pagamento de lojas em seu celular, sem ter idade suficiente para ter o serviço bancário necessário para efetuar a transação;

• uma mulher usando sistemas de e-commerce online em um ambiente cultural onde é socialmente inaceitável que as mulheres tenham relações bancárias;

• pagamentos por serviços básicos sem registro para não pagar imposto sobre venda ou trabalho;

• pagamentos a um trabalhador que tenha status de imigração inadequado;

• pagamentos de serviços de inteligência para informantes. ]

Conclusão

Portanto, é o conjunto das características de resistência à censura e de pode ser transacionado eletronicamente que torna o Bitcoin algo único, interessante e viável para determinados casos de uso. Se ele fosse apenas resistente à censura e não pudesse ser transacionado de maneira eletrônica, certamente ele teria pouca utilidade. O raciocínio contrário também é válido.

O fato das transações de Bitcoin às vezes serem baratas ou caras é apenas uma outra característica que inibe ou propicia, a depender da situação, alguns casos de uso da tecnologia. Talvez, no futuro, com o desenvolvimento de tecnologias de escalabilidade em segunda camada, como é o caso da Lightning Network, poderemos ver essas três propriedades do Bitcoin, ou seja, i) resistência à censura; ii) capacidade de transacionar eletronicamente; e iii) baixas taxas de transação, atuando de forma conjunta e possibilitando outras maneiras de utilização do ativo digital.

Barão
Com a ajuda do Oracle Hamilton R. Amorim TCC Algorista