Por que o mercado torce o nariz para moeda comum com os hermanos?
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmou a intenção de Brasil e Argentina criarem uma moeda em comum para relações comerciais e transações financeiras.
A reação do mercado diante da proposta foi tímida com o dólar em relação ao real exibindo as oscilações de sempre, mas sem movimentos esticados para baixo ou para cima. Tanto que a moeda norte-americana fechou com leve queda de 0,3%, perto de R$ 5,20. Por outro lado, antes mesmo da confirmação de Lula e de saber detalhes sobre a tal moeda, o mercado financeiro torce o nariz.
Qual seria a função da moeda comum?
A nova moeda, que poderá ser batizada de “sur“, seria utilizada apenas em transações comerciais e financeiras entre países do Mercosul para reduzir a dependência dos países latino-americanos ao dólar, que vem pressionando os mercados emergentes.
Com isso, a nova divisa estaria livre das flutuações cambiais. Porém, os países manteriam suas atuais moedas para uso interno, como o real e o peso argentino.
Não é o fim do Real: Entenda o que é a moeda comum do Mercosul
Os estudos sobre o projeto envolvem não apenas questões fiscais, mas também precisam levar em conta o tamanho das economias e o papel dos bancos centrais locais. Outros países da região foram convidados para participar do estudo.
Por que o mercado torce o nariz para a moeda comum?
Para o economista-chefe da Ativa Investimentos, Étore Sanchez, a ideia de criação da moeda comum “é confusa e faltam muitos detalhes, o que amplia o receio do mercado e tem gerado muitas especulações”. Ele diz ainda que o debate é “no mínimo estranho”, visto que a Argentina tem uma economia bastante atrelada ao dólar, além de diversos problemas monetários.
“Só para ter uma ideia, a criação de uma moeda comum nos moldes supracitados, se arbitrada, muito provavelmente não refletiria o câmbio oficial argentino. Ao passo que seria muito mais vantajoso para exportação para o Brasil, mas pioraria muito a possibilidade de compra de produtos brasileiros pelos argentinos”, avalia.
O economista-chefe da Infinity Asset, Jason Vieira, comentou que a proposta de moeda única com a Argentina, ainda que somente no âmbito comercial, é “como dividir um apartamento com alguém endividado e a pessoa propor para rachar as contas atrasadas pelo bem ‘comum'”.
A proposta de moeda única com a Argentina, ainda que somente no âmbito comercial, é como dividir um apartamento com alguém endividado e a pessoa propor para rachar as contas atrasadas pelo bem “comum”. Famoso negócio Pacú e o Brasil não entra com a primeira parte. Aguardem!!
— Jason Vieira ? (@JasonVieira) January 23, 2023
Facilitar transações comerciais entre países do Mercosul
Segundo o analista de inteligência de mercado da StoneX, Leonel Mattos, a moeda comum não seria uma moeda física, de uso no dia a dia. Seria para facilitar as negociações entre Brasil e Argentina e, quem sabe, outros países que fazem parte do Mercosul.
“O entendimento é que seria usada entre os países por Bancos Centrais e governos, em relações comerciais. Isso evitaria o uso de moedas como o dólar e o euro, além de ter menos restrições [nas negociações]”, comenta. Ele acrescenta que a Argentina passa por um momento complicado depois que teve uma “carência séria” de divisas como o dólar.
Vieira, da Infinity Asset, reforça que pela quantidade de perguntas que permeiam a proposta de moeda comum, ainda que seja para um propósito específico, ultrapassa em muito a complexidade de apenas trazer um ponto de relevância política do que prático.
Quem ganha com a “sur”?
Entre essas perguntas feitas pelo mercado está se o Brasil ou a Argentina será mais beneficiado com o “sur”. Mattos, da StoneX, acredita que seja mais prioridade para a Argentina, o terceiro maior parceiro comercial do Brasil.
“Os argentinos teriam mais a ganhar com a moeda, mesmo com a gente também ganhando. Mas não consigo ver grandes perdas para o Brasil no primeiro momento. Até porque está tudo no ar sobre a proposta de criar uma moeda”, diz.
A economista-chefe da Veedha Investimentos, Camila Abdelmalack, observa que a Argentina vem ampliando as relações comerciais com a China e o Brasil, que tem o país asiático como um dos grandes parceiros comerciais, está “de olho”.
“É importante o Brasil fomentar o comércio com países vizinhos? Sim. No entanto, a dúvida é como isso vai funcionar, como será a sistemática. A China criou uma linha de swap cambial para essa conversão de moedas para facilitar o comércio com os argentinos. Por regulamentação, isso não seria possível no Brasil”, explica.
Em entrevista à GloboNews, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, destacou que o Brasil vem perdendo espaço para a China quando o assunto são as relações comerciais da Argentina e que a criação da moeda é uma das soluções que poderiam reverter isso.
É hora de discutir a criação de uma moeda?
O “timing’ da criação da moeda também é criticado por economistas e analistas. Abdelmalack lembra que há rumores sobre a discussão entre Lula e Alberto Fernández, presidente da Argentina, desde que o petista foi eleito, no fim de outubro.
O analista da StoneX diz que a questão não deveria ser prioridade do governo Lula, agora. “Poderia ser depois”, diz. Para a economista-chefe do banco Inter, Rafaela Vitória, a criação da moeda “é mais uma da série de ‘não problemas’ para resolver. Só distração para os debates realmente difíceis que precisamos enfrentar”, comentou.
A criação de moeda única entre Brasil e Argentina é mais uma da série de “não problemas” para resolver. Só distração para os debates realmente difíceis que precisamos enfrentar.
O lado positivo é que todos parecem concordar que é uma má ideia.— Rafaela Vitoria (@rvitoria) January 22, 2023
Entretanto, a criação de uma moeda única para a América Latina não é uma ideia nova. Na verdade, o assunto vem sendo discutido desde a década de 1980. O tema nasceu em conversas entre os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsin. De lá para cá, Brasil e Argentina tentam encontrar uma forma de tirar o plano do papel. Tanto que o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a defender a moeda única em mais de uma ocasião e até chamou a moeda de “peso-real”.
Investidores, calma. Por enquanto só no papel
O sócio-diretor da Pronto Invest, Vanei Nagem, é mais cético em relação à moeda proposta já que, segundo ele, faz anos que fala-se na criação da moeda. “Na minha opinião, isso não vai sair do papel tão cedo. É muito cedo para falar dessa proposta”, diz.
Segundo ele, caso a moeda única para transações comerciais e financeiras seja criada, não impactaria a entrada de dólares para o Brasil. “A moeda pode ser criada para movimentação de mercadorias entre países do Mercosul. Mas não tiraria o fluxo de dólar no Brasil. Até porque, se tira o fluxo, ‘mataria’ esses países”, diz.
A economista da Veedha pondera que é um estudo que vai demandar meses e até anos. “Há muita informação e pouca explicação”, acreescenta.
*Colaborou Juliana Américo