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Pierre Schurmann: Bem-vindos à sociedade as a Service

16 nov 2020, 13:36 - atualizado em 16 nov 2020, 13:36
Tecnologia - 5g
“A tecnologia deixou de ser um meio e passou a integrar o core business das empresas”, afirma o colunista (Imagem: REUTERS/Alessandro Bianchi)

Depois de uma boa noite de sono no apartamento assinado por um mês, você toma café ouvindo as manchetes do dia que acionou por comando de voz em um assistente pessoal.

Como seu carro por assinatura ainda não foi entregue, você chama outro por aplicativo e se desloca ao trabalho, enquanto escuta sua playlist preferida por streaming e paga as contas no aplicativo de qualquer banco. Ao chegar ao escritório, acessa tudo pela nuvem (arquivos, ferramentas, e-mail, reuniões).

No final do dia, recebe em casa as compras e os vinhos pedidos pelo aplicativo. Após guardar tudo, fica sem energia para cozinhar. Pega o celular e seleciona a comida que mais apetece em poucos cliques.

O restaurante aciona, também por aplicativo, um serviço de logística para fazer a entrega e você pode, enfim, relaxar e, quem sabe, ver um filme por streaming ou ler em sua biblioteca virtual aquele livro que estava na fila antes de dormir.

Você há de convir que nada do que acabei de descrever remete a um filme de ficção científica. Grande parte dessas funcionalidades já se incorporou ao cotidiano de muita gente. Tudo – ou caminhando para isso – está na nuvem e pode ser consumido de forma mais acessível.

Bem-vindo à SaaS (Sociedade as a Service)!

Trocadilhos à parte, a sigla acima foi emprestada do inglês para descrever o software como serviço. Em vez de comprar fisicamente um caixa com um produto para uma função determinada, escolhe-se o fornecedor, o tipo de assinatura e a infraestrutura necessária fica por conta da empresa contratada.

A ideia não é exatamente moderna. Até meados dos anos 1990, quando as empresas precisavam de um software especifico para controle de estoque, pagamento, emissão de nota fiscal, entre outros, tinha de comprar licenças antes de instalar em servidores próprios interligados aos computadores dos usuários finais por uma rede física.

O custo saía mais salgado que batata frita de boteco. E depois tinha atualização do software e a manutenção do hardware.

E aí surgiu a internet!

Se você, como eu, passou pela experiência meio traumática meio fascinante de se conectar à internet por um modem discado e um navegador tosco, deve concordar que parece incrível onde chegamos por causa da rede mundial de computadores.

Para atender à demanda das empresas, tentou-se primeiro o modelo ASP (Application Service Provider), que já aproveitava a internet. Só que, na tentativa de criar uma plataforma completa prevendo todo tipo de processo, o software ficou pesado demais e economicamente pouco viável.

O SaaS foi a evolução do conceito. Em vez de softwares complexos demais, que tal trabalhar com soluções universais e oferecer apenas um tipo de aplicativo (que não pode ser customizado) para todos os clientes?!

E quando há uma mudança de funcionalidade, a atualização ocorre no aplicativo de maneira geral e fica disponível para todo mundo de uma vez.

Dois avanços facilitaram a vida do SaaS. O primeiro foi o aumento de performance da internet. As conexões deixaram de ser discadas, viraram banda larga, WiFi e as sucessivas gerações da telefonia móvel, que vai chegar ao 5G com uma velocidade até hoje inimaginável.

A outra é a computação em nuvem, ou seja, um espaço de armazenagem de dados que não é físico. Acessível pela internet, o serviço passa a ser ubíquo. Basta estar online.

A busca por eficiência deu a partida (webmails, suítes de produtividade como o G Suite do Google). O entretenimento seguiu a onda. Assinaturas permitem ler livros de graça (Kindle Unlimited), assistir a quantos filmes ou séries bem entender (Netflix, Disney+, Globoplay) e, se quiser, passar o dia todo ouvindo música (Spotify, Deezer, etc.)

O que era uma tendência em aceleração, virou imperativo de sobrevivência com a pandemia. No tempo dos grandes setores de TI, a tecnologia era um setor técnico, uma atividade meio como contabilidade, já que cuidava sobretudo de infraestrutura. Hoje a tecnologia deixou de ser um meio e passou a integrar o core business das empresas.

A melhor evidência disso é a popularização dos sufixos tech, que funcionam quase como um selo de modernidade para as startups de seus respectivos setores de atividade: fintechs (finanças), foodtechs (alimentos), edtechs (educação), healthtechs (saúde), agtechs (agropecuária), HR techs (serviços de RH), logtechs (logística), lawtechs e legaltechs (jurídico), insurtechs (seguros), construtech (construção e mercado imobiliário) e até o setor público para facilitar ao cidadão acesso a serviços e a intermediação da cidadania com as decisões de governo. Governo as a service.

Estimativas do PWC Global Industry Survey indicam que o uso de tecnologias digitais somente na indústria pode injetar US$ 14,2 trilhões na economia global até 2030.

No Brasil, a CNI estima que 21,8% das indústrias projetam ter o processo produtivo digitalizado até 2027. Com a adoção de práticas da Indústria 4.0 na matriz produtiva, o país terá uma economia de R$ 73 bilhões ao ano.

De acordo com o Gartner, o mercado de serviços na nuvem, divididos por categorias como as aplicações (o SaaS, propriamente dito), infraestrutura (como o Microsoft Azure), segurança, plataformas (para teste de aplicativos, como o Amazon Web Service) e até desktop vai faturar em 2020 algo em torno de US$ 258 bi em termos globais e atingir US$ 364 bi em mais dois anos.

A implantação do 5G vai impulsionar o desenvolvimento de tecnologias como a IoT (internet das coisas) e aprofundar o conceito de Tudo como Serviço (Imagem: REUTERS/Yves Herman)

Em termos de adoção, as estatísticas indicam que até o próximo ano 73% das empresas estarão usando em grande parte, ou totalmente, soluções na nuvem, enquanto 93% dos CIOs reportam que já investem ou vão investir nelas. Companhias com mais de 250 funcionários utilizam mais de 100 aplicativos do gênero.

E por que o SaaS ficou popular?

Porque facilita o investimento inicial e a escalabilidade, mesmo para quem tem orçamento limitado de IT, caso das pequenas e médias empresas e das startups.

Uma pesquisa sugere que startups usando SaaS que começaram em 2012 tinham, em média, menos de duas concorrentes. Esse número cresceu para oito em cinco anos. Um exemplo dramático pode ser notado nas soluções SaaS usadas pelos departamentos de marketing, que pularam de 500 para 8.500 entre 2007 e 2017.

Por que não está tudo na nuvem ainda?

Algumas empresas ainda relutam por conta das vulnerabilidades de segurança. Afinal, a internet é um ambiente exposto aos ciberataques. Já existem grupos criminosos que praticam o malware as a service! Vazamentos de dados geram prejuízos financeiros e de imagem.

Além da segurança, o outro calcanhar de Aquiles do modelo é a confiabilidade da internet. Evoluímos muito, mas certos serviços precisam ser quase 100% à prova de falhas de conexão. O mercado está se armando para oferecer cada vez mais internet ubíqua e confiável.

Essa é uma das atividades rentáveis da SpaceX com o lançamento dos satélites Starlink para melhorar a cobertura da rede. Aliás, os satélites também entraram na era do serviço, beneficiando empresas de comunicação, do agronegócio e outros setores.

Interessante ver como que em duas décadas de desenvolvimento o conceito “as a service” parece estar se entranhando na cultura de forma geral e relativizando até mesmo o conceito de propriedade de bens físicos.

Muitos jovens não querem comprar carro ou aprender a dirigir. A evolução da indústria automobilística, cada vez mais tecnológica, caminha na direção do carro autônomo.

Mesmo no Brasil já dá pra ter carro por assinatura. Em vez de gastar com seguro, manutenção, IPVA, paga-se uma taxa mensal – hoje por prazo mínimo de 12 meses, limitação que deve ser flexibilizada no futuro. Carro como serviço. O que pode enfim apressar a massificação dos modelos elétricos, que ainda são muito caros, beneficiando o meio ambiente.

Se não faz sentido ter a propriedade do carro, já tem gente questionando também se é racional passar 15, 20 anos da vida pagando um financiamento de casa própria. E se a pessoa puder morar num espaço com área íntima menor e um monte de serviços nas áreas comuns (lavanderia, cozinha equipada para recepções maiores, bicicletas de aluguel, academia de ginástica, etc.)? Sem grandes complicações para fazer um contrato, sem prazos fixos ou aumentos programados.

A moradia como serviço já tem adeptos no Brasil, o que resolveria até o êxodo para bairros mais distantes, tornando a cidade mais racional do ponto de vista de ocupação de espaços, uso da infraestrutura de transportes e o tráfego. Estudos nos EUA constataram que os carros particulares passam 95% do tempo parados!

A implantação do 5G vai impulsionar o desenvolvimento de tecnologias como a IoT (internet das coisas) e aprofundar o conceito de Tudo como Serviço. O mercado já tem até a sigla: XaaS, de Everything as a Service. Temos pela frente ainda muitas mudanças no ambiente de negócios e no modo de pensar o mundo. Todo mundo vai querer ser a service; e, quando você menos esperar, seu concorrente também.

Pierre Schurmann é CEO da Nuvini, grupo de empresas de SaaS, e chairman, fundador e membro do conselho da Bossa Nova Investimentos