Piero Contezini: Fintechs precisam de regulação ou protecionismo?
Quem imagina voltar a pagar um DOC para transferir uns poucos reais para um parente ou amigo, que ainda demoraria até três dias para receber o dinheiro?
Vale lembrar: o PIX e outros benefícios para o consumidor só surgiram por causa da concorrência e avanços tecnológicos proporcionados pelos bancos digitais e outras fintechs, que chacoalharam o setor financeiro nos últimos anos.
A legislação correu atrás das inovações que vinham ocorrendo no início da década passada. Em 2013, a Lei 12.865 firmou a base do regime jurídico das instituições de pagamento, oficialmente o primeiro tipo de fintech no Brasil.
A regulamentação das instituições de pagamento pelo Banco Central foi aprofundada com a resolução nº 4.282 e depois a Circular 3.680, que permitiram às fintechs começarem a oferecer diversos serviços financeiros a custos bem mais baixos que os dos bancos e beneficiando-se do imenso alcance da internet. Com tecnologias de ponta, elas elevaram a eficiência e conseguiram entregar resultados altamente satisfatórios.
Nesta época, surgiram algumas fintechs com os mais variados produtos e serviços. Uma delas o Nubank, cujo primeiro produto oferecido foi um cartão de crédito com a bandeira da Mastercard sem anuidade totalmente controlado pelo smartphone.
Outra empresa que se destacou foi o GuiaBolso, que já consolidava informações de contas e cartões em uma só plataforma para análise de dados e seleção dos melhores produtos financeiros para o perfil daquele usuário, abrindo as portas para o Open Banking no Brasil.
Voltada para pessoas jurídicas, a ContaAzul criou recurso similar com a conciliação automática dos dados financeiros de seus clientes com os dados bancários.
O projeto do Open Banking Brasil, recentemente renomeado para Open Finance, é uma resposta a inovações do setor privado como as citadas acima.
Ele estabelece um novo conjunto de regras e tecnologias para permitir o compartilhamento de dados e serviços de clientes entre bancos e outras instituições financeiras por meio da integração de seus respectivos sistemas.
Em meio a todas essas mudanças regulatórias e de cultura digital facilitada pela pandemia, observa-se o crescimento vertiginoso das fintechs no Brasil.
O Nubank atingiu 35 milhões de clientes em maio e já é o maior banco digital independente do mundo. No Brasil, é o quarto maior em número de clientes, passando até o tradicional Santander.
O banco online, criado em 2013, captou US$ 750 milhões neste primeiro semestre de 2021. Na rodada mais recente, a fintech brasileira atraiu um dos principais fundos do mercado global, a Berkshire Hathaway, holding do bilionário Warren Buffet, que investiu US$ 550 milhões na empresa.
E não é só essa fintech brasileira que atrai a atenção dos gigantes globais do mercado financeiro. Em junho deste ano, o JP Morgan anunciou a compra de uma fatia de 40% no C6 Bank. No ano passado o banco americano já havia investido também no FitBank, episódio que marcou sua entrada no mercado brasileiro.
As fintechs são a categoria de startups que lideram a atração de investimentos no Brasil. De janeiro a junho, que foi o melhor semestre da história em termos de investimentos recebidos para as startups do país, com um volume de US$ 5,2 bilhões, as empresas do setor financeiro levantaram US$ 2,4 bilhões.
Mas à medida que as fintechs avançam, o discurso dos bancos estabelecidos fica mais duro contra as novas empresas desse mercado.
“Reguladores estão dando às fintechs vantagens que não temos”, afirmou Roberto Setubal, copresidente do conselho de administração do Itaú Unibanco, maior banco do país, no início de junho.
Segundo Setubal, entre as “vantagens” que as fintechs recebem estão menores exigências de capital e de liquidez e até questões como ausência de normas para evitar lavagem de dinheiro.
Na abertura de evento de tecnologia da Febraban, no fim de junho, além do Itaú Unibanco, os executivos dos demais bancos tradicionais do mercado brasileiro (Bradesco, Santander, Caixa e Banco do Brasil) adotaram um discurso bastante parecido em relação ao tema: é necessário que a regulação seja ajustada para permitir condições iguais aos bancos já estabelecidos e outras instituições, como as startups do setor financeiro, varejistas que concedem crédito, corretoras e seguradoras.
É claro que não pode haver discriminação por parte do órgão regulador, o Banco Central, em relação às instituições financeiras já estabelecidas.
Aqui no ASAAS, por exemplo, passamos por uma avaliação duríssima, que levou mais de três anos para ser concluída, para recebermos em junho passado autorização para operar como Instituição de Pagamento nas categorias de emissor de moeda eletrônica e emissor de instrumento de pagamento pós-pago. Esse tipo de autorização só têm os próprios “bancões” e players do tamanho do Nubank, PagSeguro, etc.
Da mesma forma que não se deve pensar em discriminação, também é desejável existir um sistema de incentivo que estimule o crescimento dos novos players neste mercado de forma a beneficiar o consumidor tanto pessoa física como jurídica, sobretudo para os pequenos negócios que costumam ter o caixa mais curto, ainda mais em período de crise, e precisam otimizar todo e qualquer centro de custo.
Fintechs como o ASAAS ou Juno, por exemplo, automatizam e simplificam pagamentos, geram boletos, facilitam a gestão financeira e a cobrança automática de clientes. É um segmento que era mal atendido pelos bancos a custos mais altos.
Desde a entrada no mercado brasileiro dos bancos digitais e das fintechs, os avanços são claros, com a redução de tarifas, maior acesso às contas digitais e a seguros online, além do próprio sistema de transferências financeiras do Banco Central, o PIX, gratuito e disponível para todos os clientes das instituições financeiras online ou tradicionais.
Entretanto, não se deve parar por aí.
É preciso muita atenção para que o protecionismo de instituições estabelecidas, com alegadas assimetrias regulatórias a favor das novas empresas, não fale mais alto do que as necessidades dos consumidores, que devem estar sempre no centro de qualquer política pública e suas regulamentações.
Em um país em que ainda há 16 milhões de pessoas em idade produtiva e sem conta bancária há muito o que fazer para ampliar o acesso aos serviços financeiros.
Segundo dados do Sebrae, mesmo em um ano difícil como 2020, o volume de crédito concedido a pequenas empresas aumentou, mas não o número de tomadores, o que indica dificuldade de acesso a crédito e serviços por esse segmento.
A tecnologia e as novas startups que surgem a cada dia produzindo inovação e reduzindo custos podem contribuir e muito para melhorar esse cenário.
*Piero Contezini é CEO do ASAAS