Opinião

Paulo Silveira: Como desenvolver Sistemas Alimentares Sustentáveis?

23 out 2020, 14:09 - atualizado em 23 out 2020, 14:10
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“De tudo o que nossos sistemas agrícolas produzem, deixamos estragar 14% – 300 kg por habitante latino-americano ao ano”, afirma o colunista (Imagem: Divulgação/Abiove)

O Prêmio Nobel da Paz de 2020 conferido ao Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas é um forte sinal de que os temas do combate à fome e da segurança alimentar, que já ocupavam as pautas de debate, ganharam contornos dramáticos em um ano marcado pelo crescimento da população sem acesso aos nutrientes mínimos necessários para subsistência.

São desafios para os quais o Brasil, como grande produtor de alimento e que exporta para 180 países, tem função estratégica.

A boa notícia é: todos os elos da cadeia produtiva, do campo até a mesa do consumidor, seja processado ou natural, estão empenhados em buscar soluções sustentáveis com o auxílio da boa ciência e da tecnologia, percepção que ficou evidente no evento on-line World Food Day Brasil, organizado na semana passada pelo Food Tech Hub Br.

Entre os presentes, que integram organismos multilaterais, entidades setoriais, cooperativas, governo, academia e iniciativa privada há uma grande convergência, resumida pelo representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala: precisamos mudar o modo como produzimos, processamos e consumimos alimentos.

Um desses indicadores foi lembrado por Fernanda Martins, gerente de saúde da Unilever para a América Latina: o Dia da Sobrecarga da Terra, o ponto imaginário do ano em que nossa demanda por alimentos supera a capacidade máxima do planeta consideradas as técnicas correntes. Em 2020, foi 22 de agosto.

Medida desde 2001, a marca tem ocorrido, em média, 3 dias mais cedo por ano e o recuo atual só se deveu à pandemia.

Precisamos de 1,6 Terra para nosso padrão de consumo. Isso sem contar que as 7,5 bilhões de bocas que alimentamos hoje serão 9 bilhões até 2050, num cenário em que o aquecimento global exerce pressão sobre os recursos naturais como água e fertilidade do solo.

O primeiro passo para equacionar o crescimento da demanda por alimentos é reduzir o desperdício. O Programa Ambiental das Nações Unidas (Pnuma) calcula que custe ao mundo anualmente US$ 1,2 trilhão.

De tudo o que nossos sistemas agrícolas produzem, deixamos estragar 14% – 300 kg por habitante latino-americano ao ano, nos cálculos de Rafael Zavala.

O representante da FAO alerta que o problema atinge toda a cadeia, mas exige atenção especial na produção e no consumo, responsáveis por 28% e 27% do total desperdiçado, respectivamente.

O Brasil ocupa posição de destaque nesse debate por ter feito em 50 anos uma revolução tecnológica, como bem definiu Fernando Silveira, do Ministério da Agricultura, na qual a Embrapa teve e tem forte participação, e que nos transformou de importador de alimentos como arroz e milho em potência agrícola.

Tanto Embrapa até multinacionais do porte de BRF (BRFS3), Bayer, Danone e Maggi atuam desde a tropicalização de sementes ao enriquecimento nutritivo do alimento processado. Porque esse é outro dilema: temos um contingente imenso de pessoas com sobrepeso ou obesas e uma proporção parecida com deficiência de nutrientes.

Como destacou Ronaldo Bezerra, da Cargill, não precisamos escolher entre ser potência agrícola e ambiental. Podemos ser os dois. Sobretudo porque temos uma matriz energética limpa. Giovana Araújo, da KPMG, lembra que as novas tecnologias estão revigorando a cadeia como um todo, aproveitando-se de outro acelerador, os financiamentos verdes.

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“Segundo Paulo Estivallet de Mesquita, embaixador do Brasil na China, 20% das importações de alimento chinesas no primeiro semestre vieram do Brasil”, observa (Imagem: Reuters/Stringer)

Para Mariana Grossi, presidente do Conselho Empresarial de Desenvolvimento Sustentável, os créditos de carbono são o novo pré-sal em termos de oportunidade de financiamento.

Um exemplo é o anúncio feito pelo presidente da Bayer no Brasil, Marc Reichardt: a partir da próxima safra, a empresa vai recompensar agricultores que gerarem créditos de carbono com práticas sustentáveis de produção.

Nessa jornada de crescimento virtuoso a agricultura de precisão é relevante e precisa de conectividade, o que exige superar o déficit atual nas áreas produtivas, estimado por Giovana Araújo em 72%. Para apressar esse processo, Arnaldo Bortoletto, da Coplacana, destaca a importância do auxílio das cooperativas, que podem oferecer suporte nesse processo de transformação digital.

Lígia Dutra, da Confederação Nacional da Agricultura, reivindica que a sociedade veja o produtor rural como um empresário, que precisa de uma política de assistência técnica para gerenciamento da propriedade e melhora da produção.

Segundo Paulo Estivallet de Mesquita, embaixador do Brasil na China, 20% das importações de alimento chinesas no primeiro semestre vieram do Brasil, enquanto 10,5% da importação europeia é de produtos nossos, conforme reporta Marcos Galvão, embaixador junto à União Europeia, o que nos torna hoje o maior exportador para o bloco.

Galvão alerta ainda para a narrativa crescente na UE de que a segurança alimentar passaria por confiar mais no produtor local, próximo do consumidor e que, portanto, geraria uma pegada ambiental menor. Na opinião do embaixador, o argumento mascara uma intenção protecionista e isso, a meu ver, torna ainda mais central a adoção de práticas sustentáveis por aqui.

A indústria alimentícia tem se empenhado em utilizar boa ciência e tecnologia, como coloca o diretor de regulação da ABIA, Alexandre Novachi, para promover o consumo sustentável e alimentos mais saudáveis. Isso atinge inclusive o design de embalagens no conceito de economia circular, conforme reforça Luciana Pellegrino, diretora da ABRE. Novachi considera que há o desafio extra de fazer chegar ao consumidor cada nova conquista, combatendo a desinformação sobre o tema.

Para melhorar a qualidade dos alimentos, as Foodtechs, departamentos de grandes corporações e a academia intensificam pesquisas.

A nutricionista e doutora pela FMUSP, Lara Natacci, ressalta o trabalho da Comissão EAT-Lancet, que reúne 37 cientistas de 16 países para criar metas de dietas saudáveis, com ingestão calórica adequada, menos alimentos processados, gorduras saturadas, grãos refinados, açúcares adicionados e maior diversidade de alimentos a base de plantas.

Sobre esse último ponto, aliás, quantas variedades de alimentos a base de plantas você consome regularmente? Se passar de uma dúzia já é bastante.

A Fundadora do BioFocus Hub, Adriana Brondani, relembrou um dado contundente: cultivamos cerca de 300 espécies, utilizamos 3 mil de alguma forma, num acervo de 350 mil! Olha o espaço de crescimento aí de novo!

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“O uso de big data e analytics conecta toda a cadeia produtiva e permite a tomada de decisões mais rápidas para evitar o desperdício”, coloca (Imagem: REUTERS/Paulo Whitaker)

A preocupação com a produção sustentável de alimentos também se torna cada vez mais exigência de negócio. Conforme aponta o embaixador do Brasil junto à OCDE, Carlos Conzedey, desde 2011 a entidade tem implementado o conceito de diligência devida, pelo qual a indústria precisa prestar atenção não apenas nas suas práticas como na de toda a sua cadeia, o que faz aumentar o controle em questões como direitos trabalhistas, bem-estar animal entre outras.

Fabio Elias, da divisão de software para indústrias digitais da Siemens, reforça o quanto a tecnologia pode contribuir para a sustentabilidade, digitalizando o processo de desenvolvimento até a fabricação do produto real, tornando ele todo mais eficiente.

O uso de big data e analytics conecta toda a cadeia produtiva e permite a tomada de decisões mais rápidas para evitar o desperdício.

Concordo com Rodrigo Santos, Head de Crop Science da Bayer na América Latina, quando diz que o Brasil tem uma grande oportunidade e um grande desafio: ocupar o espaço de produtor sustentável no mundo, cuidando dos recursos naturais e levando ao mercado alimentos mais modernos.

Para isso, é fundamental continuarmos investindo em empresas focadas no desenvolvimento de tecnologias disruptivas para a produção de alimentos saudáveis, nutritivos e equilibrados. Até porque temos hoje um consumidor mais informado e preocupado com a saúde.

Os desafios na indústria alimentícia, como Marc Reichardt bem pontuou, não podem ser transpostos por nenhuma empresa, entidade ou governo isoladamente.

É preciso extensa colaboração. Confio muito em nossa capacidade inovadora e cumprir a principal meta, levantada pelo presidente da ABIA, João Dornelles, a de garantir o direito das próximas gerações a viver em um planeta sustentável.

*Paulo Silveira é CEO do FoodTech Hub Br

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