Omarson Costa: Demologia x tecnocracia, um debate que não pode ser adiado
Mal nos livramos de 2020, o mundo viu atônito uma turba raivosa vandalizar o Congresso dos EUA para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Seria a democracia a mais nova vítima da Covid?
O ano passado enfiou o processo de transformação digital num acelerador de partículas. Tech virou sufixo pra tudo.
Vamos viver numa “tecnocracia”? O termo aqui é só um trocadilho para efeito de análise: a tecnologia teria influência a ponto de virar uma espécie de regime de governo em si? Os avanços aperfeiçoam ou ameaçam a democracia?
As redes sociais surgiram como utopia cidadã. Logo me vem à mente Nelson Rodrigues em Os Idiotas confessos. “Os idiotas descobriram que são em maior número”. Ideia revisitada por Umberto Eco: “A internet promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”
O assassinato de reputações e os cancelamentos ganharam escala global num movimento iniciado com ideólogos, cientistas e especialistas em Big Data aprendendo a manipular a opinião pública.
No livro “Engenheiros do Caos”, Giuliano Da Empoli mostra que o controle de narrativas, mentiras repetidas até parecerem verossímeis são um método de capturar o espaço cívico.
A polarização no mundo reacendeu a discussão: é papel das redes sociais conter o discurso de ódio?
As tentativas de temperar a verborragia de Trump foram do fact checking à remoção de posts. Após a invasão do Capitólio, Facebook e Twitter baniram sua conta pessoal. Proibir alguém de se expressar é certo?
A rede social Parler foi tirada do ar pelo serviço de armazenamento da Amazon, para supostamente evitar a migração conspiratória. A empresa Zignal Labs constatou que houve queda de 73% de mensagens no Twitter sobre fraude nas eleições uma semana após o banimento.
Juridicamente, o Twitter tem direito de tirar de sua plataforma privada quem burla suas regras. Mas que regras são essas?
Há algum tempo se fala de regular as redes sociais. Na minha opinião, precisa. Para ontem! Só temos de entender em qual categoria elas se enquadram.
O analista britânico Benedict Evans questiona: seria o Facebook um “publisher”? Com 2,5 bilhões de usuários postando 100 bilhões de vezes por dia?! Jornais e rádios têm filtragem humana e responsabilidade legal.
Seria melhor então usar para as redes sociais a regulação das companhias telefônicas? Operadoras não ditam o que se pode dizer numa ligação. As redes o fazem assim que nos inscrevemos.
É cômodo dizer “O Twitter é um jornal, cancela quem espalha fake news”. Será? Trump acusou o New York Times. Evans pontua que os limites do discurso público são uma evolução de séculos de normas sociais e culturais. Elas determinam o que é adequado falar no espaço público: de um telefonema à mesa de bar.
E hábitos são locais. O que se diz no bar do Japão, não é o mesmo na Alemanha ou no Rio.
A internet são várias esferas interconectadas. Uma conversa no WhatsApp é de cunho privado. E os grupos de Facebook? Um tuíte é uma notícia?
Steve Jobs achava que o computador em si deveria ser considerado uma mídia, um dispositivo como rádio e TV, transmissor de conteúdo, como um livro.
Ben Evans estranha que empresas sejam encarregadas de recriar toda uma malha de estruturas de consenso amadurecidas por 200 anos.
Anúncios políticos no Facebook podem contar mentiras? Os jornais publicam. Os canais de TV são proibidos de bloquear anúncios de candidatos nos EUA, mas na Inglaterra são regulados. Proibir anúncios políticos é bom para os candidatos à reeleição e aos populistas com seus trolls, mas prejudica moderados e novatos. Quem dá a definição exata do que é fake news hoje é um cara de 36 anos chamado Mark, brinca Evans.
E as eleições?
O debate sobre redes sociais e democracia, no final, passa pela influência no processo eleitoral em si. No Brasil, há anos se fala do voto impresso para permitir a conferência em papel dos registros eletrônicos.
Nossas urnas são seguras? O TSE argumenta que, como não ficam na nuvem, é impossível invadi-las. Mas todo sistema tem vulnerabilidades. De fato, não há até hoje evidências de fraudes.
Suspeitas à parte, votar pela internet parece bom para reduzir a abstenção e incentivar a participação em consultas públicas e referendos. Ou seja, uma “demologia” (democracia tecnológica) autêntica.
Já existem experiências do gênero. A primeira foi em 2007 na Estônia, onde 30% utilizam o i-Voting. Nos EUA, a Virgínia Ocidental foi pioneira em testar autenticação por blockchain. Uma tentativa (malsucedida) de hackear o sistema fez o estado desistir do app.
Entre especialistas, a ideia é polêmica. Um paper do MIT considera que sistemas online são vulneráveis a ataques feitos em larga escala, mais difíceis de detectar.
Outra pesquisa, publicada em parceria entre a Universidade de Vienna e Stanford, é mais otimista e acha que um sistema baseado em blockchain poderia até desafiar a noção de um voto por cabeça. Yoan Hermstrüwerm, autor do texto, levanta outro problema: uma criptografia avançada não rodaria em celulares low-end, alijando cidadãos do processo.
Nem vale comentar sobre computação quântica, que jogaria todas as criptografias atuais no lixo em segundos.
Conclusão
O leitor notou que sou cético em relação às “demologias” e suas “demotechs”. Ainda levará algum tempo para darmos esse passo de forma segura.
Quanto ao espaço cívico, sou mais assertivo. A internet é um serviço e como tal deve ser regulada. Digo mais: as leis nacionais devem prevalecer sobre o “Termo de Uso” (geralmente estrangeiro) das redes sociais.
O Parler, de que falamos no começo do texto, vai voltar ao ar sob proteção de uma empresa russa, que tem o Kremlin e o Hamas como clientes. Onde vai ficar hospedado? Não se sabe.
Internet é serviço local, deve se submeter às leis locais. Não dá mais para o espaço cívico ser uma espécie de assembleia de condomínio misturada com guerra de facções.
Ainda estamos mais para tecnocracia do que para demologia.
Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet