Coluna do Marmaga

O risco da “pasteurização” corporativa em nome da boa governança

09 maio 2024, 12:09 - atualizado em 09 maio 2024, 12:55
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“É preciso sim responsabilidade, governança e processos. Mas devemos estar atentos aos exageros que são comumente cometidos em função das tais ‘melhores práticas'”, alerta Marcelo Magalhães, em sua estreia como colunista (Imagem: Pixabay/ JoBischPeuchet)

O dia de bater o martelo na Bolsa e fazer uma Oferta Pública de Ações, ou IPO na sigla em inglês, é sensacional. Chegar lá é 0 sonho de consumo do mais puro capitalismo. A empresa passa a ter o novo status de ser listada, ou de capital aberto, incrementando as fontes de acesso ao capital, reduzindo os custos de captação. Sua gestão será mais transparente, pode atrair mais talento e viabilizar potencialmente planos mais ambiciosos de crescimento e geração de valor.

Esse dia de festa coroa meses, ou mesmo anos de trabalho. Acionistas e time de gestão se consagram e muitas vezes monetizam toda uma carreira de trabalho. Os gestores de mercado e investidores em geral também se beneficiam da criação de mais oportunidades de investimento e diversificação de portfólios. Os banqueiros e advogados também saem com os bolsos cheios de “fees” cobradas pelo trabalho de “due dilligence”, venda e corretagem das ações.  Todo mundo ganha!!

Mas o IPO também inaugura um novo momento para as empresas e seus dirigentes, que carregam consigo inúmeros riscos de embarcarem no que chamo de “pasteurização corporativa”. Um batalhão de conselheiros independentes, auditores, advogados, consultores de toda ordem ganha força, vem como uma primeira onda da pasteurização consumindo tempo e orçamentos consideráveis para a implementação do que é comumente designado de “melhores práticas”.

É aí que se incorre no perigo de confundir a boa governança com a “pasteurização”. Os assim chamados processos, políticas e sistemas que devem ser implantados para assegurar que a empresa esteja em “compliance” com todas as leis, regulamentos e padrões de controles internos e externos, trazem consigo o risco de perda de diferenciação, degradação da cultura corporativa, e indução do time de gestão a aversão ao risco.

Não digo que todas as empresas de capital aberto caiam nessa armadilha, mas é preciso liderança e em geral uma cultura empresarial forte para se evitar esse percurso. A consequência da pasteurização pode ser justamente a perda da vantagem competitiva sustentável que muitas vezes foi o principal fator que levou a empresa ao sucesso e ao IPO.

Boa governança e riscos: As lições da Nike e da Netflix

Trago aqui dois exemplos recentes, retratados em filmes ou livros, de empresas que geraram enorme valor aos seus acionistas, inclusive no período pós IPO, por resistirem a pasteurização corporativa e em alguns casos inclusive demonstrarem clara e aberta aversão a excessiva implementação de processos e controles.

A saga da Nike em torno do contrato revolucionário de patrocínio de Michael Jordan, retratada no filme Air, traz consigo algumas pérolas como as indicadas abaixo em tradução livre:

“Um resultados perfeito é o que importa, não um processo perfeito. Quebre as regras, lute contra a lei” -“Perfect results Count – not a perfect process. Break the rules, fight the law” – Nike – Princípios Originais de Rob Strasser

“Eu lhe disse para não se tornar uma companhia pública. Você muda. Acontece com todas as empresas. Eles passam a se importar apenas com o resultado de curto prazo e em manter o conselho feliz” –“I told you not to go public, you change It happens in all companies. They Only care about the P&L statement and keep the board happy” – diálogo de Matt Demon (Sonny Vaccaro – olheiro da divisão de basquete) e Ben Affleck (Phil Knight – Fundador e CEO da Nike no momento do filme )

“Somos lembrados pelas regras que quebramos. Feche o maldito negócio” -“We are remembered by the rules we break,. Close the f… deal” – Phil Knight para Vaccaro em um dos momentos decisivos do filme.

Já no livro “No Rules Rules – Netflix e a cultura da reinvenção”, escrito por Reed Hastings, cofundador da Netflix e Erin Meyer professora do INSEAD, logo no início se retrata o Netflix Culture Deck, um conjunto de slides que retrata a cultura corporativa da empresa, onde a questão de férias e o código de vestimenta da empresa é assim definida:

Netflix Vacation Policy and Tracking
“There is no policy or tracking”
There is also no clothing policy at Netflix, but no one comes to work naked
Lesson: you don’t need policies for everything

Essencialmente indicando a ausência de política de férias ou código de vestimenta da Netflix e a lição de que não é necessário ter política para tudo. Em outro trecho, quando se retrata a visão de Hastings para os primeiros passos para uma cultura de liberdade e responsabilidade, a lista começa por:

1 – Primeiro dê densidade de talento ao time…. (First build up talent density….)
2 – Diga o que você realmente pensa – com intenção positiva … (then increase candor…)
3 – Agora começe a remover controles… ( Now begin REMOVING controls…)
3.a Remova a Política de Férias … (remove Vacation Policy)
3.b Remova as aprovações de viagens e despesas
(Remove Travel and Expense Approvals )

Desconsiderar processos e controles não é algo que possa ser feito de forma ampla. É preciso sim responsabilidade, governança e processos. Mas devemos estar atentos aos exageros que são comumente cometidos em função das tais “melhores práticas”. Eles são o caminho mais fácil, em que membros de conselhos e do time de gestão podem muitas vezes encontrar a justificativa para agir da forma mais confortável, com menos riscos na “pessoa física”, mas nem sempre visando a maior geração de valor para seus acionistas e a sociedade.

O papel do conselho de administração na governança corporativa

Com uma história pessoal de empreendedor, consultor, executivo e conselheiro, ao longo de mais de 40 anos de carreira e tendo inclusive capitaneado um processo de IPO dos mais bem sucedidos dos últimos anos no Brasil, eu vivenciei de perto esse desafio e muitas vezes me peguei capitulando. Chamo especialmente a atenção aos programas de formação de conselheiros – em 2022 participei de um dos mais renomados no país – para que procurem dar mais ênfase aos aspectos de estratégia e diferenciação, reforçando o papel do Conselho de Administração na proposição e defesa de uma cultura efetiva e diferenciada que leve a tal “vantagem competitiva sustentável”.

Na minha visão, uma das maiores responsabilidades de conselheiros e executivos do C-LEVEL deve ser justamente olhar para estratégia, baseada na atração e retenção de talentos, e na montagem de um time e uma cultura empresarial capaz de gerar diferenciação e valor. E isso passa, também por questionar melhores práticas, praticar uma cultura de respeito e responsabilidade para com os colaboradores e sobretudo, dar o exemplo.

Procurei sempre como executivo não me conformar com os benchmarks externos. Mesmo em uma indústria centenária como a petroleira, é possível inovar e criar um espírito de startup que possa gerar diferenciação. Assim, me identifiquei muito com a proposta de cultura corporativa de Hastings, que valoriza muito o ser humano, o talento e a prática de feedback honesto. E claro, muito satisfeito ao ver que o “First Expense Guideline” da Netflix, reflete quase que literalmente uma regra de “gaste o recurso da empresa como se fosse seu”, aplicada por muito tempo ao meu time de gestão.

(No Rules Rules, 2020 é uma publicação da Pinguin Randon House – Copyright © Netflix. Inc 2020)

(Air, 2023 é um filme escrito por Alex Convery e dirigido por Bem Affleck e produzido por Artist Equity)

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