Reportagem Especial

O que aconteceu com os carros populares no Brasil?

03 jun 2024, 9:10 - atualizado em 03 jun 2024, 9:10
carros setor automotivo 2024
Medidas recentes tentaram impulsionar carros mais acessíveis, mas consultores entendem que fomentos devem ser mais duradouros (Imagem: Torsten Dettlaff/Pexels/Canva)

A década de 90 trouxe consigo diversos acontecimentos marcantes. Para a economia, o destaque era a hiperinflação, com acumulado de 1.476,56% em 1990; e, para o setor automotivo, a chegada dos carros populares.

Em 27 de junho do mesmo ano em que a inflação atingia os quatro dígitos, surgia também o decreto 99.439, reduzindo para 20% o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de carros com motor de até 1.000 cm³ e favorecendo o Uno Mille, considerado o primeiro carro popular do país.

A lei foi modificada pelos diversos governos que seguiram até ser encerrada em 1995, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas deixou na memória do brasileiro a lembrança de carros mais acessíveis à população.

Segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), entre os carros de entrada – termo preferido pelas montadoras e por aqueles que acompanham o setor – em detrimento de “popular”, o Fiat Mobi, de R$ 72.990, e o Renault Kwid, a uma faixa de R$ 73.640, lideram vendas, com participações respectivas de 52,25% e 47,65% nesse segmento em específico.

No entanto, apesar de ainda dominarem boa parte do mercado, as montadoras estão diminuindo a oferta de carros de entrada, assim como os consumidores andam reclamando dos preços dos modelos. 

O que vêm acontecendo com um setor que um dia já foi alvo de extensos incentivos por diversos governos?

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Consumidor se tornou mais exigente

Em 2024, segundo dados da Bright Consulting, as vendas do setor automotivo passam por altas sequenciais. Foram 206.780 vendas apenas em abril, uma alta de 37% em relação ao começo do ano.

A alta também ocorre em uma comparação com anos anteriores mais recentes, como no gráfico abaixo, também com dados da Bright Consulting:

 

Vendas setor automotivo – anual de Money Times

O aumento, entretanto, ainda não voltou aos patamares anteriores de um evento importante ocorrido em 2020: a pandemia de Covid-19, que trouxe consigo falta de semicondutores, peças e equipamentos para o setor, alta dos juros e inflação, afetando a procura dos brasileiros por novos automóveis.

André Ganselli, cientista de dados da Bright Consulting, aponta que a pandemia trouxe consigo diversos impactos para o setor automotivo, passando desde uma mudança de comportamento das gerações atuais, que busca outras formas de se locomover como aluguel de carros ou serviços como Uber, até o problema na cadeia de suprimentos.

Ele destaca os problemas enfrentados com os semicondutores, gerando uma produção mais baixa e queda nas vendas, enquanto pessoas mais ricas continuavam comprando veículos, aumentando o ticket médio dos carros.

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Sant Clair de Castro Jr., consultor automotivo e CEO da Mobiauto, também destaca a demanda na pandemia, apesar da queda na oferta durante o período.

“A oferta aumentou porque logo após a pandemia vimos o advento de muitos carros chineses chegando com preço razoáveis, mais competitivos, e de alguma forma sendo uma nova opção para o consumidor, que gosta de novas opções”, destaca Sant Clair sobre os movimentos pós-pandêmicos.

Os especialistas apontam a alteração no perfil do consumidor brasileiro, que passou a preferir esperar para comprar um carro e tornou-se mais exigente com relação ao que é procurado, que contam com conteúdos que também encarecem os veículos.

André afirma que o consumidor tem optado por não comprar carros mais básicos, sem tanta tecnologia. “Infelizmente, o poder de compra não é tão alto, então o consumidor demanda um pouco mais dessas tecnologias. Eu não diria que ele parou de comprar, mas ele se tornou um consumidor um pouco mais exigente”, afirma.

O que aconteceu com os carros populares?

No ano passado, um programa de descontos para compra de carros zero foi lançado pelo governo federal, disponibilizando R$ 500 milhões às montadoras e fornecendo descontos em carros.

A Fiat, do grupo Stellantis, foi a montadora que mais pediu recursos à época, com R$ 190 milhões em créditos tributários. Além dela, outros nomes como Honda, Hyundai e Peugeot Citroën também solicitaram recursos.

Após o fim do programa, que durou no total pouco mais de um mês, Geraldo Alckmin, vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, considerou a iniciativa um sucesso. 

“O presidente Lula teve muita sensibilidade social em relação ao emprego e à importância da indústria neste momento que estamos passando. Temos uma ociosidade de quase 50%, isso poderia levar à perda de emprego”, disse, na época, durante coletiva da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).

Enquanto isso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, negou que novos recursos poderiam ser investidos no programa, afirmando que a medida exige compensação e que há falta de espaço fiscal para o movimento.

O CEO da Mobiauto pontua que a redução de impostos é uma medida mais eficiente que a criação de uma demanda artificial por meio de subsídios, a qual gera uma procura maior no momento, mas que faz com que haja uma falta no futuro.

“Acho que essa é outra maneira do governo apoiar o setor, mas para isso ele teria também que cumprir com seus outros compromissos, eliminando despesas para conseguir reduzir os impostos”, complementa.

Ele aponta que, no passado, as medidas de incentivo a esses carros eram mais efetivas, pois os veículos não contavam com todas as tecnologias exigidas atualmente, e que os benefícios temporários geram certa desconfiança pelo fato da consequente retomada dos patamares antigos de preços.

“O fato é que, quando você mexe nos preços dos veículos, é necessário fazer com que você consiga alcançar novas camadas. Tem que fazer com que a parcela do financiamento baixe, e como isso é feito? Ajudando os bancos a administrar melhor o risco”, explica, complementando que taxa de risco, custo da operação, spread e taxa de juros são componentes que devem ser analisados.

Para Castro Jr., os investimentos no setor automotivo devem ser pensados no longo prazo e com a criação de metas consistentes, pensando em investimentos na infraestrutura do país, na cadeia produtiva e na redistribuição, apoiando concessionários para que eles consigam distribuir seus veículos.

Carros de luxo têm maior procura e elétricos são impulsionados

Enquanto os carros populares buscam caminhos para reconquistar os consumidores, a Bright Consulting aponta que o setor de veículos de luxo observou alta de 21,37% nas vendas entre 2022 e 2023, sendo que foram vendidos 14.904 carros do segmento até abril deste ano.

 

Vendas de carros de luxo – anual de Money Times

O consultor da Mobiauto afirma que o segmento tem aumentado bastante, com a classe mais rica do país não sentindo tanto o achatamento no poder de compra que é sentido pelas classes médias.

André também reitera que o público que procura por esse segmento é a classe mais rica, com uma demanda observada principalmente por executivos e por compra desses veículos.

Ele cita que, nesse setor, os eletrificados possuem uma maior penetração, já que ainda não são tão procurados pelo consumidor no geral. No total, esse segmento observou alta de 92% de vendas entre 2022 e 2023.

Junio William, sócio da AlugaAí, locadora de automóveis focada exclusivamente em veículos executivos e esportivos de luxo, afirma que eles são procurados especialmente por empresários ou empreendedores, entre 35 a 50 anos, e que a busca aumentou recentemente.

“O mercado de locação ou assinatura de veículos vem crescendo ano a ano, e de dois anos para cá, a procura por veículos de luxo para esse fim também. Acredito que o fator seja pela facilidade e também pelo alto custo de manter um veículo desse porte quando se é proprietário”, afirma William, citando também que o público hoje prefere alugar um veículo enquanto foge de taxas de juros altas.

Ele complementa que a procura por híbridos e elétricos também aumentou nos últimos seis meses.

Recentemente, o Programa Nacional de Mobilidade Verde (Mover) foi lançado pelo governo brasileiro, prevendo um total de R$ 19,3 bilhões em créditos financeiros entre 2024 e 2028, com montadoras buscando os incentivos.

Algumas das exigências do Mover, entretanto, prevem a necessidade de incentivos em energia verde e redução de emissões de carbono, medidas que também impulsionam a eletrificação no setor.