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“O código (não) é a lei”: como julgar um processo em que a “culpa” foi do código?

01 nov 2020, 11:00 - atualizado em 30 out 2020, 15:32
O que máquinas de caça-níquel tem a ver com cripto? Entenda, neste artigo de opinião por Stephen Palley, por que a tão famosa frase “o código é a lei” não se encaixa no contexto cripto atual (Imagem: Unsplash/helloimnik)

O código não é a lei. Nem mesmo uma lei municipal. No entanto, esse “meme” mal compreendido pegou carona no trem dos extintos esquemas de cripto que surgiram por aí.

A ideia (segundo alguns fabricantes de memes relacionados a cripto”) é que, se aplicado, o código do blockchain permite que qualquer tipo de comportamento aconteça se o código permitir.

Assim, não reflete a intenção declarada de seus criadores ou participantes; é a lei de transação, em oposição a uma lei exógena criada por pessoas.

É claro, a ideia de que softwares existem fora da estrutura jurídica é pura idiotice. Essa noção foi ignorada diversas vezes por reguladores e autoridades. Se você violar leis usando o código, você será responsabilizado (ou pior: preso).

O código não é a lei — a lei é a lei. Aliás, isso não é contrário ao que escritor Lawrence Lessig quis dizer quando criou essa frase. Vamos entender por que o blockchain não está além da aplicação da lei ou de seus litigantes.

Primeiro, vamos pensar no seguinte: o que acontece se uma falha em um contrato autônomo permitir que alguém emita uma grande quantidade de tokens ao simplesmente respeitar o código aplicado?

Vimos isso acontecer em 2016, quando a rede TheDAO foi atacada. O real problema nunca foi contestado, mas resultou em uma divisão de redes que nos deu Ethereum (ETH) e Ethereum Classic (ETC). Clique aqui para saber mais.

Blockchains são conhecidos por seu código programável, seguro e inalterável; o que acontece se um usuário apenas seguir as regras de funcionamento do blockchain, mas acabar com milhões de tokens “sem querer”? (Imagem: Freepik/macrovector)

A falta de um precedente direto nos faz questionar como um tribunal iria decidir a questão. Alguém que se aproveita de uma falha em um protocolo blockchain de código aberto está simplesmente seguindo as regras do jogo, assim como uma pessoa que inocentemente joga em um caça-níquel?

Ou são como alguém que conscientemente rouba dinheiro de um caixa eletrônico quebrado, algo proibido em muitas jurisdições (será considerado roubo ou fraude se um banco apresentar queixas).

Esse tipo de questão é discutido em um processo judicial enviado por Mark Shin contra a ICON Foundation.

Shin é representado por Kyle Roche da empresa de advocacia Roche Cyrulnik Freedman, conhecida por ter, entre outras coisas, processado Craig Wright em nome de Ira Kleiman, bem como meia dúzia ou mais de corretoras cripto anteriormente este ano, em uma suposta ação coletiva, alegando uma grande manipulação de mercado.

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Resumindo o caso “Shin vs. ICON”: Shin emitiu, sem querer, milhões de tokens pela plataforma ICON devido a uma falha no código; ICON pediu que corretoras congelassem suas contas, então Shin entrou com uma ação contra a ICON (Imagem: Freepik/macrovector)

O processo judicial é em relação à governança do token ICX, nativo do blockchain ICON.

Segundo a acusação:

Em 22 de agosto de 2020, logo após ICON ter lançado uma grande atualização de software às regras em relação à rede ICON e, depois de já ter ganhado centenas de milhares de tokens ICX, Shin descobriu, involuntariamente, uma falha no software que permitiu que ele gerasse cerca de 14 milhões de tokens ICX. 

Shin não hackeou nenhuma rede ou modificou qualquer código-fonte no software em que foi escrito ou excedeu a autorização que a rede ICON fornece a todos os seus usuários ou quebrou quaisquer regras aplicáveis.

Isso foi uma alegação muito bem escrita, para garantir que Shin não caia sob o escopo da Lei de Fraude e Abuso de Computador (que criminaliza a autorização excedente em ou com uma plataforma de software).

Em vez disso, segundo a acusação:

Shin simplesmente reconheceu que, quando realizou uma tarefa específica na rede, o resultado foi a geração de novos tokens ICX em sua conta ICX, ou “carteira”, então ele continuou a realizar essa tarefa e gerar tokens ICX. 

Se uma máquina de caça-níquel continuar pagando toda vez que alguém puxar a alavanca, algo que vai contra qualquer regra do cassino, o jogador deve continuar puxando a alavanca. A rede ICON não tinha essas regras, nem expressas ou implícitas.

O que você faria se estivesse no lugar de Shin? Continuaria puxando a alavanca da caça-níquel ou informaria a equipe sobre a falha? (Imagem: Unsplash/amit_lahav)

A parte requerente afirma que, qualquer que tenha sido a intenção por trás da atualização de software, outros usuários adotaram e emitiram mais seis milhões de tokens para si.

É aqui que a requerente afirma que as coisas saíram do controle. Em vez de consertar o código e permitir que as pessoas mantivessem os tokens obtidos, a ICON Foundation publicamente anunciou que ele era um “invasor malicioso”.

E, apesar da afirmação de que isso era um protocolo descentralizado — a Foundation entrou em contato com corretoras cripto e exigiu que congelassem suas contas, com sucesso. Em seguida, entraram em contato com ele via Twitter e o ameaçaram de processo penal.

A requerente adquiriu seus tokens pela Binance, Kraken e Velic e, enquanto isso, “nunca concordou com quaisquer termos de serviço ou contratos com ICON”.

Segundo a acusação, o requerente poderia ter adquirido diversas criptos de graça pela seguinte forma:

Em 22 agosto de 2020, Shin tentou direcionar parte de seus tokens ICX de serem delegados a um repositório para delegá-los para outro por meio da carteira ICONex. Ele selecionou um novo repositório e “votou” com seus tokens delegados para esse repositório.

Após iniciar o processo de redelegação com a ICONex, um processo que antes ele teve de realizar muitas vezes, Shin percebeu que 25 mil tokens ICX apareceram em sua carteira.

Shin pensou que havia uma falha visual no software da carteira. Ele tentou redelegar seus tokens novamente e viu que mais 25 mil tokens ICX apareceram em sua carteira.

Shin não fez nada para acessar ou alterar (nem poderia tê-lo feito) o protocolo da rede ICON nem sabe por que o protocolo o premiou com 25 mil tokens ICX recém-emitido cada vez que ele realizasse o processo de delegação.

O processo de Shin foi demonstrado abaixo. No fim, a carteira em questão tinha uma quantia mínima de ICX que poderia ser transferida.

Para iniciar o processo de redelegação, Shin selecionou seus ICX delegados (ou seja, os ICX em staking designados para um repositório).

Em seguida, Shin notificou que ele desejava relegar esses tokens (selecionando o Rep Rhizome).

A requerente entendeu que, se Shin poderia “redelegar” os mesmos tokens diversas vezes, poderia receber uma recompensa por novos tokens cada vez — apesar de não pôr mais capital em risco.

A requerente faz essa analogia com um cassino, alegando que foi “como se Shin entrasse num cassino, colocasse uma moeda em uma máquina de videopôquer, apertasse diversos botões e ganhasse um jackpot. Em frente à máquina, Shin continuaria a colocar moedas, apertar os mesmos botões e ganhar outro jackpot”.

Apesar disso e de alegada e consequentemente ser o dono de 14 milhões de tokens ICX, Kraken e Binance os congelaram e ICON bloqueou seus endereços. Como consequência, agora ele não pode transferir qualquer um de seus ativos dessas corretoras.

Existem quatro acusações no processo, enviado ao Distrito Norte da Califórnia no dia 20 de outubro.

Primeiro, a requerente pede por uma sentença declaratória do tribunal de que os tokens ICX emitidos em 22 de agosto são propriedade dele.

Segundo, que existe uma alegação para “conversão” (que é um tipo de acusação por roubo de propriedade).

Terceiro — algo bem surpreendente —, a requerente alega que o acesso e a interferência aos tokens constituem violação de bem móvel (de propriedade pessoal).

Quarto, a requerente alega algo chamado de “Prima Facie Tort”, que é o transtorno de dor miofascial do Direito Penal — basicamente, é uma genérica causa plausível para má conduta.

Com certeza, a Fundação responderá que a conduta foi algo parecido com roubar dinheiro de um caixa eletrônico defeituoso ou de uma máquina caça-níquel quebrada (reiterando: você não pode fazer isso).

Shin sabia o que estava fazendo? A culpa é da ICON? (Imagem: Freepik/macrovector)

A requerente irá responder que estava apenas seguindo as regras do jogo e perdeu tempo e arriscou seus ativos para tal, e que é apenas um truque da Fundação para acobertar uma decisão após o ocorrido sobre o propósito do código.

Sinceramente, não se sabe qual será o resultado disso. Será decidido em moções ou terminar no tribunal se não for resolvido?

Por outro lado, as ações das corretoras em chamar um cara de ladrão e congelar todos os seus ativos não são fatos tão bons para a Fundação, nem se enquadra na noção de que isso é, na verdade, algo descentralizado.

Ao mesmo tempo, o júri pode não gostar de um argumento muito ruim/triste demais pela requerente, e o réu irá argumentar que sabiam que o código era falho após a primeira vez que ele fez isso.

Provavelmente, irá argumentar que a requerente teria de saber que ele estava obtendo vantagem de uma falha de forma não intencional e que, depois de tê-lo feito uma vez, ele deveria saber que o que estava fazendo excedia o propósito ou a funcionalidade pretendida do código.

Outras questões em voga podem ser a intenção das partes e, talvez, de se o requerente realmente soubesse ou devesse saber que ele estava explorando uma falha de forma não intencional para o possível detrimento de outros.

Não temos uma bola de cristal para prever o futuro, mas uma coisa é certa: não ouviremos o argumento de que “o código é a lei” caso esse caso vá para o tribunal. O código ainda não é a lei.

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