Nicholas Sacchi: Ameaça oculta ou instrumento especulativo?
Por Nicholas Sacchi, especialista da Empiricus Research
Quando o Facebook anunciou o projeto Libra, lá no início do ano, duas coisas se passaram imediatamente pela minha cabeça.
A primeira delas é que a jogada de Mark Zuckerberg geraria uma grande conscientização e adoção em massa dos criptoativos. A segunda é que faria com que a regulação do mercado, há tanto procrastinada por formadores de política, caminharia a passos mais largos do que nunca.
E não deu outra: dentre várias medidas adotadas por reguladores ao longo deste ano, destaco a da última sexta-feira, 18, quando o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), que coordena os comitês dos principais bancos centrais, e o G7, grupo composto pelos países mais industrializados do mundo, publicaram um artigo em conjunto com as suas concepções iniciais sobre stablecoins.
De acordo com a publicação, as “stablecoins globais” (GSC, na sigla em inglês), com alcance internacional, têm o potencial de gerar efeitos adversos significativos no sistema financeiro atual, trazendo riscos conhecidos e desconhecidos para o mercado.
Quase como um golpe disferido diretamente à Libra, os desafios apontados pelo estudo estão relacionados não só à lavagem de dinheiro, à transferência internacional de recursos, à proteção do consumidor e do investidor e à cibersegurança, mas também às questões de política monetária e estabilidade financeira e ao sistema monetário internacional como um todo.
Precedentes, em letras miúdas
Vale notar que, nas notas de rodapé, o artigo afirma que a autoridade do mercado de capitais suíça (FINMA, na sigla em inglês) concorda com as recomendações feitas pelo G7 e pelo BIS.
Um leitor mais desavisado pode estar se perguntando por que alguém se importaria com uma mera nota de rodapé. É que, nesse caso, a Suíça é justamente o país onde está sediada a Associação Libra. Ou seja, concordar com as determinações do G7 implica em definir as regras do jogo para a iniciativa do Facebook.
Não foi à toa que no domingo, 20, o cocriador e CEO do projeto, David Marcus, comunicou num evento que a empresa poderia abandonar a ideia de uma stablecoin que replica uma cesta de moedas e ativos para emitir um conjunto de moedas com preços atrelados a moedas nacionais, como dólar e euro.
Consegue perceber a magnitude do evento? Estamos presenciando a formação de um mercado onde os principais reguladores do mundo se veem obrigados a discutir uma nova classe de ativos e a traçarem, em conjunto, as melhores práticas a serem seguidas.
Descaso nas entrelinhas
Ainda assim, a sensação que fica é que os líderes econômicos continuam a ignorar o potencial de disrupção do bitcoin e dos demais criptoativos, especialmente ao alegarem que:
“[os criptoativos de primeira geração como o bitcoin] sofreram com preços altamente voláteis, escalabilidade limitada, interfaces complicadas e problemas com governança e regulação, dentre outros desafios. Portanto, os criptoativos serviram mais como uma classe altamente especulativa de ativos para certos investidores e indivíduos envolvidos em atividades ilícitas em vez de uma forma de se fazer pagamentos.”
É lendo nas entrelinhas que se percebe que o tom de afronta indica que os governantes das principais nações do mundo não enxergam os criptoativos como uma ameaça.
Cabe aqui, meus caros amigos, o lembrete de que estamos falando de uma rede com potencial de transmissão de valores que não precisa responder a qualquer jurisdição para existir.
Limitar a força da classe de ativos meramente por conta de suas restrições tecnológicas soa um tanto presunçoso e arrogante. Basta uma rápida releitura da trajetória da internet para entender que as redes abertas evoluem de maneira exponencial.
Por exemplo, se um site levava alguns minutos para carregar por completo e um vídeo levava algumas horas para ser processado por inteiro, hoje temos uma infraestrutura de rede que possibilita a transmissão de informações em altíssima velocidade.
O que quero dizer é que a escalabilidade é uma fronteira naturalmente transponível. Foi para a internet e será para os blockchains públicos. Afinal, estamos falando de protocolos abertos, que contam com a colaboração de desenvolvedores do mundo todo. Os desafios tecnológicos serão resolvidos com o tempo.
De qualquer forma, seja para a Libra, seja para os demais criptoativos, trazer os criptoativos para o centro da discussão regulatória é algo extremamente positivo para o mercado.