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‘Não fazer nada é perpetuar os privilégios brancos e o racismo’

27 dez 2021, 9:14 - atualizado em 27 dez 2021, 9:23
Coca-Cola
Foi assim que Marina voltou dos EUA para assumir a área de Diversidade e Inclusão (D&I) na Coca-Cola, criando um movimento paralelo com oito empresas na luta pela equidade racial (Imagem: Unsplash/@chernus_tr)

Coca-Cola, Magazine Luiza (MGLU3), Gerdau (GGBR4) e Nestlé têm muitas coisas em comum, mas, para além de serem grandes empresas atuantes no Brasil, são algumas das 47 signatárias do Movimento pela Equidade Racial, o Mover, criado no ano passado e formalizado em junho deste ano.

Na figura de seus presidentes e CEOs, essas empresas se comprometeram a gerar 10 mil postos de trabalho de alta liderança para profissionais negros até 2030, com o impacto adicional da transformação das culturas interna e externa, influenciando a sociedade.

Para que não seja da boca para fora e para que as ações ajudem a reter talentos negros em ambientes corporativos inclusivos, as organizações contribuem com de R$ 250 mil a R$ 500 mil por ano (de acordo com o porte da empresa).

Para 2022, o Mover já tem R$ 15 milhões para, por meio de cursos, capacitações, ações de letramento, eventos e oferta de vagas, ajudar a reduzir o gap que separa negros de altos cargos executivos.

Na avaliação de Marina Peixoto, diretora-executiva do Mover, “a luta pela igualdade racial, assim como a luta por uma sociedade mais justa, tem de ser de todos”, independentemente de a qual grupo você pertença, sendo homem, mulher, branco ou negro. “Tenho privilégios, como a maioria das pessoas brancas.

E justamente por termos esse privilégio temos a responsabilidade de mover a estrutura”, diz. “Fazer nada é corroborar com perpetuar o racismo. Então, a gente precisa entrar nessa luta.”

Segundo a pesquisa “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil”, do Instituto Ethos, realizada em 2016 (a mais recente), apenas 4,7% dos cargos executivos são ocupados por profissionais negros; na base, negros são 35,7%, enquanto são a maioria da população brasileira (54%).

Neste ano, entre as vagas ofertadas pelas empresas do Mover em eventos, foram 1.132, sendo 26% para cargos de supervisor e coordenador e 9% para gerente e diretor – proporção que o movimento deve corrigir nas próximas ações.

Engenheira de produção, Marina Peixoto migrou cedo para marketing e administração, tendo em sua carreira a agenda de propósito como pano de fundo.

Executiva com quase 20 anos de Coca-Cola, liderou campanhas que traziam impacto social quando o termo ESG ainda nem era falado.

Nos últimos anos, após ter uma filha diagnosticada com síndrome de Down, passou a atuar com diversidade e inclusão, até que estava em Atlanta, nos Estados Unidos, quando George Floyd foi assassinado por policiais, em maio de 2020.

O caso de Floyd, homem negro, detonou mundialmente e também no Brasil o combate ao racismo e os programas de inclusão racial nas empresas.

Foi assim que Marina voltou dos EUA para assumir a área de Diversidade e Inclusão (D&I) na Coca-Cola, criando um movimento paralelo com oito empresas na luta pela equidade racial.

No dia 23 de novembro do ano passado, lançava um compromisso público então com 13 empresas, até que o Mover foi formalizado juridicamente como associação em junho deste ano e hoje agrega 47 empresas.

Há pouco mais de dois meses Marina se desligou do seu emprego na Coca-Cola para estar em tempo integral à frente do movimento, ao lado de dois diretores executivos: Carlos Domingues (da Pepsico) e Hellen Andrade (da Nestlé). Além deles, 200 voluntários das empresas participantes integram os comitês do Mover. Entre parceiros externos, estão o ID_BR (Instituto Identidades do Brasil) e o Fundo Baobá, entidades do movimento negro que ajudam com suporte a cursos e letramento racial.

Para que o Mover funcione, pontua Marina, o envolvimento dos CEOs é crucial, para impactar os funcionários de cima para baixo. Assim, há encontros mensais com CEOs, além de reuniões mensais com os conselheiros (também CEOs) e quinzenais com outras lideranças, entre outras dinâmicas.

“Cada empresa tem seus desafios e níveis de letramento. Todas vão chegar a um mesmo lugar, mas as jornadas devem ser diferentes. E quanto mais empresa no movimento melhor. A gente quer ampliar e influenciar a sociedade como um todo”, fala Marina.

As 47 empresas hoje associadas são: Alcoa, Aliansce (ALSO3), Ambev (ABEV3), Americanas (AMER3), Arcos Dorados-McDonald’s, Atento, Bain & Company, Marfrig (MRFG3), Cargill, Coca-Cola Brasil, Colgate-Palmolive,  CSN (CSNA3), Danone, Descomplica, DHL Supply Chain, Diageo, Disney, EF, General Mills, Gerdau, GPA (PCAR3), Grupo Carrefour Brasil (CRFB3), Heineken, JBS (JBSS3), Kellogg, Klabin (KLBN11), Kraft Heinz, L’Oréal Brasil, Lojas Renner (LREN3), Magalu, Manserv, Marfrig (MRFG3), MARS, Michelin, Mondelëz International, Moove, Nestlé, PepsiCo, Petz (PETZ3), RD – Raia Drogasil (RD – RADL3), Sodexo, Tenda Atacado, UnitedHealth Group Brasil, Vale (VALE3) , Via (VIIA3), XP (XP Inc). e 3M.

Confira abaixo trechos da entrevista com Marina Peixoto.

Como se sente sendo uma mulher branca liderando um movimento pela igualdade racial no mercado?

A luta pela igualdade racial, assim como a luta por uma sociedade mais justa, tem de ser de todos, independentemente de você participar de um grupo minoritário. Todos deveriam lutar por isso. A causa não pode ficar somente dentro daquele grupo que sofre com o racismo, o machismo ou o capacitismo. Todos nós temos um papel de fazer evoluir a sociedade.

Especificamente na questão racial, que estou liderando aqui no Mover ao lado de outros dois diretores, todos temos lugar de fala, só que são lugares diferentes. Aproveitando o que (a filósofa) Djamila Ribeiro fala, as perspectivas são distintas. Eu não vou ter a perspectiva de uma pessoa negra que passa pelo racismo. Eu vou ter a perspectiva de uma pessoa branca que teve, sim, seus privilégios, como a maioria das pessoas brancas. E justamente por termos esse privilégio temos a responsabilidade de mover a estrutura.

Se hoje os cargos de liderança ainda são majoritariamente ocupados por pessoas brancas, cabe a elas mexer, cabe a elas tomar decisões com esse olhar de busca pela igualdade. No Fórum Brasil Diverso, eu citei a frase da professora Cida Bento sobre o pacto narcísico da branquitude, que é quando as pessoas brancas tendem a evitar falar do assunto ou achar que isso não tem nada a ver com elas porque não se acham racistas.

O racismo é estrutural e precisa de uma solução estruturante e, para mexer a estrutura, é preciso de todos, principalmente das pessoas que estão hoje no poder, que são brancas. A sociedade está pedindo (mudança), o mercado financeiro também, mas é uma luta que vai demorar anos. Se a gente (brancos) não entra, a velocidade vai ser diferente.

E se a gente não se coloca nesse papel de responsável, a gente vai ser corresponsável por perpetuar algo que já existe. Se a gente não faz nada, fazer nada é corroborar com perpetuar esses privilégios, com perpetuar esse racismo. Então, a gente precisa entrar nessa luta.

Isso não quer dizer, então, que vocês não vão trazer pessoas negras para o movimento.

Exato. A gente não quer ser um movimento de pessoas brancas construindo ações para pessoas negras. A gente sempre falou de fazer “com”, e não apenas “para”. Hoje, como está a nossa governança? Em relação aos CEOs, ainda são majoritariamente brancos e majoritariamente homens. Temos três CEOs que se autodeclaram negros, entre as 47 empresas que fazem parte do Mover.

Na nossa governança, temos uma assembleia de associados, formado por CEOs – brancos. No Conselho Deliberativo, temos seis CEOs e três pessoas da sociedade civil, que são pessoas do movimento negro, para termos essa visão de fora do mundo empresarial e também trazer representatividade negra para a tomada de decisão. Não podemos citar ainda nomes, pois estamos registrando tudo em cartório.

Ter visões complementares foi uma preocupação que a gente desde sempre quis construir. Ter um olhar do terceiro setor, um olhar da Academia, um olhar do empreendedorismo, um olhar mais de inovação, formando uma lente multidisciplinar também.

No dia a dia executivo, somos eu e outros dois diretores, que são pessoas negras, Carlos Domingues (Pepsico) e Hellen Andrade (Nestlé). A partir disso, formamos comitês estratégicos em cima de cada pilar de atuação, para gerar 10 mil posições de liderança até 2030 para pessoas negras.

O comitê de ações internas, por exemplo, vai ajudar a criar as diretrizes, garantir que todas as empresas participantes estejam fazendo censo demográfico, treinamentos, letramento. E o comitê de ações externas está conectado com o pilar de capacitação e empregabilidade, para formação com bolsas de estudos, de graduação. Ao mesmo tempo, a gente também tem que mudar as políticas de recrutamento e seleção, para que se tenha uma linguagem mais inclusiva e processos que mitiguem os vieses inconscientes.

Como pode ser feita a conexão com o mercado de trabalho?

Não é só a conexão com as 47 empresas do movimento, mas queremos ser um grande conector com toda a cadeia de valor, com fornecedores, com clientes. Tem uma parcela de profissionais com gap de formação, sim, mas por outro lado a gente também tem uma parcela da população negra extremamente capacitada, com alto nível de formação, que não está chegando nas empresas. E daí a empresa fala: ‘Ah, eu não encontro (profissional negro)’. É porque não está procurando no lugar certo.

Com esse comitê de capacitação a gente vai ajudar a formar aqueles que tenham essa diferença de formação, que não tiveram a mesma oportunidade, mas por outro lado também conectar com quem está ali já na porta do gol, para quem falta fazer só essa aproximação.

Neste ano, estivemos no AfroPresença, evento do Ministério Público do Trabalho com o Pacto da ONU, ofertamos 300 e poucas vagas selecionadas das 47 empresas, a maioria para cargos de liderança.

Também fomos para a Conferência Juntos, da McKinsey, e ofertamos 400 e poucas vagas, além de 100 bolsas de estudos da Descomplica, uma das nossas associadas, e tivemos 70 e poucos voluntários das empresas para formar o programa de mentoria da McKinsey, que será dado a profissionais negros.

No Fórum ID_BR, na sequência, foram cerca de 700 vagas, algumas exclusivas (para negros) e outras intencionadas, muitas para cargos de gerente e diretor. Agora queremos lançar no próximo ano no nosso site um Classificados com oferta de vagas para aproximar cada vez mais as empresas dos talentos negros.

Mas hoje o site do Mover já tem a oferta de vagas das 47 associadas, não?

Sim, mas hoje eu clico lá na empresa e vejo todas as vagas daquela empresa. A gente quer poder filtrar só os cargos de liderança, ou por área, cargos de finanças, marketing.

De modo que seja mais fácil encontrar a vaga, não importa a empresa. Se eu sou economista e quero uma vaga nessa área, em vez de entrar em cada uma das 47, eu vou usar os filtros: vagas de finanças, cargo de coordenador para cima etc. A gente vai fazer essa melhoria em torno do segundo pilar, de conectar vagas com esse público.

Além desses dois pilares e seus respectivos comitês, tem mais algum que orienta o trabalho do Mover?

Sim, um terceiro. Os comitês estão formados em cima dos pilares estratégicos. Então, no primeiro, a gente tem a meta dos 10 mil cargos de liderança.

Para chegar na liderança, tem toda a construção de base, não é só recrutar. Se eu chego lá e não tenho um ambiente inclusivo, você não retém esses talentos. Então esse pilar, que inclui um trabalho interno, vai trabalhar toda essa parte de mudança cultural das empresas.

No segundo pilar, a gente tem 3 milhões de oportunidades em conexão com o mercado de trabalho. Envolve um comitê externo porque é voltado para fora das empresas.

E o terceiro pilar estratégico, o nosso terceiro compromisso, é para contribuir com a conscientização da sociedade em torno do tema, por meio de um comitê de comunicação. É um grupo de trabalho que não só vai comunicar os avanços do Mover mas também ajudar a estruturar ações que ajudem na conscientização.

Aqui dentro, a gente treinou todos os quase 200 voluntários, com letramento por meio do curso ABC da Raça, do ID_BR. Dentro das empresas, a gente deixa que cada um contrate o parceiro que preferir (para consultoria de inclusão e letramento), mas vamos garantir que eles façam esse letramento de forma massiva.

A gente fez uma ação icônica agora em novembro (perto do Dia da Consciência Negra), quando completamos um ano do nosso primeiro compromisso como movimento, e a gente chamou todos os colaboradores para assistir à live Dia do Mover.

Porque não adianta só os 200 voluntários ou CEOs, mas todos os colaboradores das empresas têm de estar envolvidos. Todos eles vão, nas suas diferentes áreas, influenciar para que essa cultura seja formada.

E a gente, enquanto Mover, também está trabalhando com fornecedores negros, agências de comunicação, equipe de suporte (como contador, jurídico), além de ID_BR, Baobá. A gente tem de ser consistente para influenciar a política de fornecedores das empresas.