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Matheus Spiess: pensando em setembro – ventos vindos da Alemanha e o legado de Merkel

13 ago 2021, 19:27 - atualizado em 13 ago 2021, 19:33
Angela Merkel
“É plausível argumentar que o sucesso de Merkel se deve, em grande parte, ao seu perfil plural e conciliador, capaz de construir consenso”, aponta (Imagem: REUTERS/Annegret Hilse/Pool)

Muitas vezes, não damos a devida atenção a assuntos de extrema importância, mas que parecem distantes de nós.

O que uma eleição na Alemanha em setembro de 2021, por exemplo, teria a ver conosco? Temos tantos problemas já para lidar por aqui, afinal.

Bem, a verdade não é bem por aí, uma vez que o processo eleitoral alemão do mês que vem talvez seja o mais importante dos últimos anos, com potenciais implicações internacionais relevantes.

O motivo?

Tudo está ligado ao fato de que, após 16 anos, Angela Merkel deixará o cargo de chanceler alemã, tendo anunciado desde outubro de 2018 que não permaneceria na liderança de seu partido, a União Democrática Cristã (CDU, na sigla em alemão), para as eleições marcada para 26 de setembro, no fim de seu quarto mandato.

A mudança será paradigmática. Ao longo dos anos em que esteve no poder, Merkel não só se tornou a mulher mais poderosa e influente do mundo, como também colocou a Alemanha como líder da União Europeia, sustentando o Euro por diversas crises.

A externalidade de uma imagem robusta, neutra, elegante, sóbria e estabilizadora fez com que muitos alemães a chamassem de “mutti” (derivado da palavra “mutter”, que significa “mãe” em alemão).

Sua posição consolidada lhe rendeu admiradores e detratores. Naturalmente, ao ficar tanto tempo em um gabinete, todos os tipos de atenção são atraídos.

No comando de seu país desde 22 de novembro de 2005, quando foi eleita a primeira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra, Merkel viu ir e vir quatro diferentes presidentes americanos, quatro franceses, oito líderes italianos, oito japoneses e cinco premiês britânico.

Mais comparações podem ser observadas abaixo:

Veja como a chanceler alemão aparece absoluta na estabilidade de seu cargo ao longo dos anos.

Nota-se que menos rostos diferentes saudaram Merkel como os principais políticos da Índia e da China.

Enquanto, para o primeiro, a reeleição de Modi está chegando em 2024, para o segundo, já temos o presidente chinês Xi Jinping tomando providências para estender seu governo por mais tempo (os limites de mandato para presidentes chineses foram abolidos em 2018) – Xi está ao lado de Merkel a mais tempo do que qualquer outro líder mundial na análise.

Apesar da aparente tranquilidade em se manter no poder, os anos da gestão Merkel não foram nada simples.

Pelo contrário, foram abarrotados de crises, as quais possibilitaram a emergência da líder alemã como uma das poucas figuras programáticas e estáveis do cenário político global.

Tal abordagem fez com que ela fosse considerada por muitos como a política mais bem-sucedida da Alemanha desde a reunificação e da Europa enquanto governou – trouxe a frágil Alemanha de 2005 para a posição de titã europeu da contemporaneidade.

Se pudéssemos resumir os anos dela no comando, apontaria para quatro momentos:

i)           Transição energética: em 2011, depois do incidente em Fukushima, a chanceler foi vocal em eliminar todas as usinas nucleares em funcionamento na Alemanha até 2022, estruturando um plano de mudança da matriz energética do país em direção a fontes mais renováveis, em especial eólica e solar – em 2020, 48% da energia consumida na Alemanha veio de alguma fonte renovável;

ii)         Crise de 2008 e crise da Zona do Euro: Merkel teve um papel ímpar no centro das discussões envolvendo a recuperação da União Europeia no pós-crise de 2008, com destaque para suas políticas de austeridade sobre economias como a portuguesa, a espanhola e, principalmente, a grega – bastante polêmica em relação a este ponto, mas inegavelmente a atuação da premiê foi decisiva para a integridade do Euro;

iii)       Crise dos Refugiados: o momento mais delicado de seu governo foi em 2015, durante a maior crise migratória na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, quando mais de um milhão de refugiados fugiram do Oriente Médio, com destaque para a Síria e Afeganistão, e da África para a Europa – em resposta, a Alemanha mudou radicalmente suas política migratórias, influenciando a Europa e recebendo mais indivíduos do que qualquer outro país (foi o primeiro grande baque na popularidade de Merkel, que até então surfava em sua maior vitória parlamentar em 2014, abrindo espaço para o ressurgimento de uma extrema esquerda nacionalista mais forte na Alemanha;

iv)       Gestão da pandemia: ainda afetada pelas sucessivas quedas de popularidade, Merkel teria mais uma crise para enfrentar antes de encerrar seu último mandato, a pandemia da Covid-19. Foi aqui que a chanceler retomou as rédeas da situação e se mostrou como a líder diferenciada que é no século 21 – sua boa gestão na pandemia foi referência para a Europa inteira e para o mundo, colocando a primeira-ministra novamente no sob os holofotes e recuperando a popularidade do seu partido na reta final antes da eleição de 2021.

É plausível argumentar que o sucesso de Merkel se deve, em grande parte, ao seu perfil plural e conciliador, capaz de construir consenso e formar coalizões com alas mais ao centro e à esquerda em detrimento do posicionamento tradicional à direita de seu partido.

Suas alianças ao longo dos anos permitiram que ela conseguisse implementar as reformas econômicas necessárias na Alemanha, cortando gastos, reduzindo o desemprego e promovendo crescimento.

Claro, isso não veio de graça. A gradual migração de seu partido mais para o centro, em uma posição moderada, ao longo dos anos permitiu a eclosão de partidos de extrema direita em seu país, principalmente depois da crise migratória, da legalização da união homoafetiva e do fim do serviço militar obrigatório.

Espasmos nacionalistas exacerbados geram fraturas na União Europeia, como aconteceu no caso do Brexit (divórcio do Reino Unido com a União Europeia), que começou em 2016 e até hoje encontra negociações acaloradas – tais rupturas são ruins para o Euro e para a estabilidade do comércio global, prejudicando a expectativa de crescimento de longo prazo.

De todo modo, Merkel vai deixar saudade e, principalmente, um potencial vácuo de poder que, se preenchido de maneira equivocada, poderá causar alvoroço na economia global, prejudicando a retomada de crescimento neste momento pós-pandêmico. Se seu sucesso não for tão afetuoso ao Euro ou não sustentar o pragmatismo atual, bastante volatilidade pode se fazer presente nos ativos e risco internacionais.

Em nível nacional e internacional, Merkel se destacou pela liderança estóica e firme gestão durante crises, sustentando o Bloco Europeu durante diversos imbróglios existenciais e uma ressaca da saída do Reino Unido da União Europeia.

Além disso, hoje, a Alemanha se posiciona como líder de sua aliança econômica, entregando um país que deverá entregar em 2021 e 2022 bons indicadores econômicos, também marca da Era Merkel, que em breve se encerra. Seu sucessor vai ter bastante trabalho por fazer se quiser manter a sobriedade no estilo negociados e estável da atual chanceler.

Seu maior legado foi manter o Euro unido, apesar do Brexit; logo, quem vier depois terá que se preocupar em manter a Alemanha forte e sem rupturas muito agressivas.

Isso porque, me valendo de um racional já esboçado pela própria Merkel, se a Alemanha falhar, o Euro falhará e, consequentemente, a Europa fracassará, o que será inegavelmente ruim para a economia global.

As cenas dos próximos capítulos serão interessantes e com alto impacto para nosso investimento, tanto no âmbito doméstico quanto no internacional.