Coluna do João Gabriel Batista

Luzes apagadas: Livraria Cultura fecha loja icônica após inovar com ‘Netflix’ dos livros e marketplace físico

27 jun 2023, 17:08 - atualizado em 27 jun 2023, 17:08
Sem previsão de reabertura, a Cultura fechou as portas após cinco anos de entraves judiciais (Eduardo Otubo/Flickr)

Quase cinco meses após ter sua falência decretada pela Justiça e sobrevivendo desde então graças a liminares, a Livraria Cultura sofreu um importante – e talvez irreversível – revés e fechou sua principal loja física em São Paulo.

Com o indeferimento da suspensão da falência, que havia sido solicitado pela defesa da livraria, um oficial de Justiça foi à loja para cumprir a ordem de despejo, segundo informa a Folha de São Paulo. Foram quase 55 anos no Conjunto Nacional, sendo 16 no formato de megastore.

Sem previsão de reabertura, a Cultura fechou as portas após cinco anos de entraves judiciais. A empresa atravessou um longo período de Recuperação Judicial, que perdura desde 2018, quando buscou se proteger dos credores por uma dívida à época orçada em R$ 285 milhões.

Dois anos depois, veio a pandemia, que atuou como agente catalisador de seu desmonte: com as restrições de funcionamento, a rede, que procurava apostar na experiência de seus clientes com lojas amplas, as quais muitas vezes se confundiam com pontos turísticos, se reduziu a apenas dois endereços (um em São Paulo e outro em Porto Alegre).

“Netflix dos livros”:

Em abril de 2021, a Cultura lançou o Cultura Pass – que, em uma analogia simplória, nada mais é que um Netflix dos livros (ou o que a boa e velha biblioteca faz desde os seus primórdios, mas agora mediante um valor).

Por uma assinatura mensal que hoje parte de R$ 16,90, o cliente da Cultura pode retirar quantos livros quiser para ler ao longo do mês.

As regras do programa são simples: o cliente só pode retirar um livro por vez e, em caso de não devolução, a empresa assume como premissa de que o cliente desejou ficar com a publicação para si e lançava uma cobrança em seu cartão – ainda assim vantajosa, pois é aplicado um desconto sob o preço de capa.

Aos leitores que não são apegados à ideia de ter um exemplar físico na estante de casa, o negócio é vantajoso até mesmo para quem não é tão voraz: assumindo que nenhum livro custa menos que R$ 16,90, qualquer retirada e devolução no mesmo mês já torna o plano extremamente vantajoso.

Mas nem tudo são flores no programa da Cultura. Há ao menos dois ofensores: um enquanto produto e outro do ponto de vista de marketing. Não é de hoje que o acervo de livros da Cultura vem se reduzindo.

Cheguei a assinar o plano durante alguns meses, mas diante das dificuldades de encontrar certos lançamentos, optei pelo cancelamento.

O programa também foi pouco divulgado: enquanto gigantes do streaming têm verbas altíssimas para anunciar em mídias de massa, como TV e OOH (out-of-home), a Cultura não conseguiu contar esta novidade para ninguém além de seus próprios frequentadores.

O primeiro marketplace físico do Brasil

O termo marketplace ganhou força no varejo brasileiro no decorrer dos últimos anos. Não há mistério algum em seu conceito: trata-se de uma plataforma que intermedia que vendedores e compradores possam fazer transações sem o ônus de investimentos em criação ou desenvolvimento de lojas virtuais, sistemas de ERPs, marketing e, ao mesmo tempo, garantindo segurança para o comprador, já que toda a jornada de compra é acompanhada pela marca – geralmente, de renome.

A modalidade teve o Mercado Livre como um dos precursores e logo ganhou a adesão de lojas como Magazine Luiza, Americanas, Submarino, entre outros.

O que não existia até então era o marketplace físico – cujo conceito só se diferencia de shoppings centers pelo fato de os shoppings não atuarem com vendas diretas (todas elas ocorrem por meio de lojistas), enquanto o marketplace permite que as vendas diretas e indiretas coexistam harmonicamente.

Na Livraria Cultura da Avenida Paulista, seus corredores haviam sido fatiados em espaços para editoras – algo até então inédito no Brasil. Há placas espalhadas pela loja pedindo que os consumidores se atentem, afinal o estoque não pode se misturar.

Para o consumidor, a experiência pouco mudou: apenas os mais atentos conseguem perceber que não se trata mais de uma única loja.

Mas, como modelo de negócio, é algo disruptivo, afinal editoras, que nunca tinham contato direto com o público final, passaram a atuar na ponta.

Além disso, a operação se tornou menos complexa: por já haver o espaço montado, clientela fixa e todo o aparato de estrutura para um ponto de venda funcionar, à editora cabe apenas abastecer o estoque, treinar funcionários e vender.

Sem expectativa de retorno: com quem ficará o espólio?

Com o fechamento da loja do Conjunto Nacional, a Livraria Cultura deixa um espólio que certamente será disputado por concorrentes diretos ou indiretos.

Em reportagem publicada também pela Folha, em março deste ano, Marcus Teles, CEO da Livraria Leitura, demonstrou publicamente intenção de ter naquele espaço sua primeira megaloja na capital paulista.

Já em fevereiro surgiram rumores de que a Livraria da Vila, de Samuel Seibel, estaria de olho no ponto de venda.

As duas empresas foram as mais beneficiadas com a derrocada da Cultura como também da Saraiva, absorvendo parte dos seus pontos de venda ou ingressando em shoppings que se tornaram órfãos de livrarias.

Tanto a Leitura como a Livraria da Vila vêm ganhando musculatura para voos maiores em modelos de negócio mais saudáveis.

A Leitura tem um portfólio extenso de papelaria, games, presentes e produtos do universo geek, o que ajuda a elevar sua margem e garantir maior recorrência no seu ponto de venda. Ainda que tenha lojas espaçosas, elas em nada se lembram das grandes estruturas que a Cultura e Saraiva tinham no passado.

Diferentemente da Cultura, a Livraria da Vila fez mudanças estruturais em seu modelo de negócio antes que fosse tarde.

O modelo de megastores, que teve como auge na segunda metade dos anos 2000 e primeira metade dos anos 2010, não se sustenta mais devido ao avanço do e-commerce e dos altos custos operacionais.

Os 1700 metros quadrados da charmosa unidade do JK Iguatemi, que foi inaugurada em 2012, foram reduzidos em praticamente 70% em 2017, quando foi reaberta com cerca de 500 metros quadrados.

Outras lojas também foram enxugadas à medida em que foram reformadas, como a do Pátio Higienópolis e Cidade Jardim – ou até mesmo extintas, como ocorreu no Cidade Jardim em 2022.

Aos fãs dos livros, resta a torcida para a recuperação da Cultura ou o fortalecimento de concorrentes que possam preencher a lacuna deixada por ela.

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João Gabriel Batista é publicitário, com pós-graduação em Marketing and Sales na Escola de Negócios Saint Paul e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Tem 30 anos e atua com marketing há 11, com passagens por veículos de comunicação, como emissora de TV, rádio e jornal, e multinacionais do segmento de telecom.
joao.gabriel@moneytimes.com.br
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João Gabriel Batista é publicitário, com pós-graduação em Marketing and Sales na Escola de Negócios Saint Paul e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Tem 30 anos e atua com marketing há 11, com passagens por veículos de comunicação, como emissora de TV, rádio e jornal, e multinacionais do segmento de telecom.
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