Juliana Facklmann: infraestrutura de mercado — é preciso sair da ilha para ver a ilha
Alguns conceitos são tão arraigados para quem vive o dia a dia do mercado financeiro que, ao tomarmos uma certa distância, passamos a questionar funcionamento de alguns mecanismos.
Como escreveu o escritor José Saramago, em “O Conto da Ilha Desconhecida”, é preciso sair da ilha para ver a ilha.
No meu caso, precisei me afastar da infraestrutura de mercado financeiro como a conheci — depois de trabalhar ativamente nela, em momentos decisivos, em que novas diretrizes mundiais eram implantadas — para fazer um exercício de ressignificá-la.
Minha reflexão vem ganhando novos elementos nos últimos tempos e, na velocidade e intensidade com que vêm surgindo, exigem uma discussão aprofundada sobre aspectos regulatórios.
Tanto que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) decidiu debater o assunto na Semana Internacional do Investidor, painel do qual tive oportunidade de participar.
O debate trouxe luz sobre possibilidades para o mercado brasileiro, à medida que os investidores têm mais alternativas para fazer render e proteger seu patrimônio, como as criptomoedas e ativos digitais.
Se antes a ideia de criar novas centrais depositárias e novos mercados organizados parecia ousada ou até mesmo exótica, o futuro próximo está apontando para esta direção. Diversas jurisdições e até mesmo órgãos multilaterais começam a reconhecer, cada um a seu tempo, a “realidade tokenizada”.
É um caminho sem volta que pode parecer imperfeito, mas que acredito ser perfeito em sua incompletude — e aí está sua beleza.
Esse movimento permitirá que a regulação e o direito alcancem suas finalidades, seja no estabelecimento de regras sobre uma nova realidade econômica e/ou social, na correção de falhas do mercado, na redução de fricções e riscos sistêmicos e, principalmente, na proteção ao investidor.
Para ilustrar essa situação, podemos citar a regulação norte-americana sobre criptoativos, que se ajustou a uma nova realidade de regras já existentes.
Começou com a classificação de tokens como valores mobiliários (securities), passando pela proteção de investidores (aplicação de regra da Autoridade Regulatória da Indústria Financeira, ou FINRA, a Alternative Trading Systems, ou ATS) e acabou nas questões típicas em relação a custódia e liquidação de ativos.
A própria regulamentação americana se entende incompleta, imperfeita. Porém, sua imperfeição não impede que a sociedade siga o caminho. Mas é preciso ter firmeza necessária nos pés, flexibilidade para desviar de buracos e força para transpor obstáculos.
Juliana Facklmann é Head of Regulation e Product Design do Mercado Bitcoin.