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Joaquim Levy: A exuberância da arrecadação federal veio para ficar?

22 nov 2021, 17:34 - atualizado em 22 nov 2021, 17:34
Joaquim Levy, diretor de Estratégia Econômica e Relações com os Mercados do Banco Safra
Efeito colateral: com o lockdown, brasileiros deixaram de consumir serviços e ampliaram demanda por bens industrializados, favorecendo a arrecadação, diz o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy (Imagem: Divulgação/ Banco Safra)

A arrecadação federal vem crescendo com força em 2021. Em setembro, a arrecadação de impostos e contribuições excluindo a previdenciária cresceu 14% acima da inflação do IPCA em relação setembro de 2020. A arrecadação de janeiro a setembro a preços de setembro de 2021 está 25% acima daquela dos 9 primeiros meses de 2020. Esse crescimento não é um fenômeno estatístico decorrente da queda da arrecadação em 2020. A arrecadação também cresceu acima da inflação em relação a 2019.

O que estaria causando esse crescimento, e quão significativa ou duradoura será essa boa fase? Há indicações de que o crescimento da arrecadação acima da inflação (IPCA) é ligado a diferenças na carga tributária de diferentes setores da economia e ao aumento de demanda por bens durante a pandemia. E que ele não é tão grande quando medido em relação ao PIB nominal, e pode ser revertido nos próximos meses, com a retomada dos serviços e a acomodação da economia como um todo.

Um dos principais fatores para o aumento da arrecadação nos últimos meses foi a disparada do consumo de bens produzidos pela indústria durante a pandemia. Com o fechamento do comércio (“lockdown”), o consumidor teve dificuldade de consumir serviços, como restaurantes e outras atividades que exigem proximidade física, e direcionou seu poder de compra para bens.  Esse direcionamento foi turbinado pela grande injeção de dinheiro público na economia para enfrentar o lockdown (perto de meio trilhão de reais). O boom de consumo de produtos industriais acabou pressionando o preço das matérias primas e impulsionando o lucro das empresas.

Esses movimentos não são únicos ao Brasil, refletindo o que aconteceu na maioria das economias avançadas, em que as políticas keynesianas também foram empregadas com grande vigor. Esses movimentos se traduziram no aumento do preço das matérias primas aqui e no resto do mundo.  No Brasil, esse aumento foi incrementado pelo enfraquecimento do real, resultando na subida acelerada do preço das commodities industriais em reais, com o IC-Br de metálicos subindo 100% e IC-Br energia 87% nos 24 meses até setembro último.

Normalmente, o aumento do preço das commodities impacta mais o preço no atacado do que no varejo. No Brasil, o preço dos produtos industriais no atacado (IPA-manufaturados) cresceu 51% nos últimos dois anos, enquanto o preço ao consumidor dos bens industriais (Núcleo IPCA-industriais) cresceu 12%, mesma taxa da subida do IPCA-duráveis que mede o preço de bens como geladeira, automóvel, entre outros. O IPCA completo cresceu 13,7% no período.

Gráfico 1 - Joaquim Levy
(Elaboração: Joaquim Levy)

Por que os fatores acima são importantes? Porque o dinamismo da arrecadação federal está concentrado nos tributos mais sensíveis ao aumento de consumo de bens, especialmente industriais, assim como do impulso que esse consumo deu na lucratividade das empresas.

A arrecadação do Imposto de Importação (II) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) nos 9 primeiros meses do ano corrente subiu respectivamente em 30% e 14% acima da inflação em relação ao mesmo período de 2019. A do IPI-Importação cresceu 48%.  O PIS-Cofins ficou no “zero a zero” no mesmo período, porque as empresas estão usando créditos criados pela decisão do STF de retirar o ICMS da base de cálculo daquelas contribuições para economizar no pagamento dos seus tributos devidos, o que representa uma perda de arrecadação de dezenas de bilhões de reais nesse e nos próximos anos.  A arrecadação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), por outro lado, subiu 31% acima da inflação e a da CSLL, cuja base de cálculo é parecida com a do IRPJ, cresceu 23%, também graças ao surto de atividade proporcionado pelo impulso fiscal e monetário de 2020 e o boom das exportações com a subida das matérias primas.

Só as contribuições previdenciárias têm perdido da inflação (variação de -2%) apesar do aparente crescimento do emprego formal, segundo o Cadastro Geral do Emprego e Desemprego (CAGED).

tabela 2 - Joaquim Levy
(Elaboração: Joaquim Levy)
Arrecadação Janeiro-Setembro Deflacionada pelo IPCA (Jan-Set 2014= 1,00)
Imp. Importação IPI total IPI Import IPI outros IR total IRPJ Cofins PIS CSLL INSS
2019 0,88 0,86 0,95 0,89 1,07 1,03 0,99 1,00 1,03 0,92
2020 0,85 0,78 0,98 0,76 1,03 0,98 0,78 0,84 0,95 0,80
2021 1,14 1,00 1,41 1,02 1,24 1,35 0,99 1,04 1,27 0,90
2021 /2019 +30% +16% +48% +14% +16% +31% 0% +4% +23% -2%

Esses resultados podem surpreender à primeira vista, mas são devidos em grande parte a efeitos de preço e de composição do consumo na esteira da Covid-19. Eles não implicam em uma mudança estrutural da economia brasileira ou da arrecadação federal. Eles têm a ver com um aumento maior dos preços no atacado do que dos preços ao consumidor (usados pela Receita Federal para deflacionar a arrecadação), e com a maior tributação da produção industrial do que do setor de serviços.  O patamar atual da arrecadação não deve ser, portanto, muito persistente, especialmente na medida em que a economia se acomodar em uma taxa de crescimento bastante moderada, com crescimento do PIB projetado para 2022 perto de 1%.

O efeito de composição, decorrente do setor industrial pagar IPI e II, e de as alíquotas do PIS-Cofins incidindo sobre bens ser maior do aquelas sobre serviços, pode ser ilustrado com um exemplo simples em que hipoteticamente o consumidor gasta originalmente 70% da sua renda em serviços e 30% em bens. Com a pandemia o consumidor muda também hipoteticamente o perfil da sua despesa, levando o preço do bem industrial a subir 20%, e gastando 45% da sua renda em bens. Nesse exemplo, a despesa fica igual, a inflação sobre 6%, e o consumo contrai em termos reais, mas a arrecadação aumenta em 30% (22% acima da inflação).

  Preço Original R$ Gasto Original R$ Novo Preço R$ Novo Gasto R$ Novo Consumo Real Alíquotas Arrecadação  
R$ R$ %
Bens 1 30 1,2 45            37,5 30% 9 13,5 50%
Serviços 1 70 1 55            55,0 5% 3,5 2,75 -21,4%
Total   100   100            92,5 12,5% 12,5 16,25 30%

O efeito composição também aparece de outra forma na própria arrecadação dos bens industriais, quando a inflação das matérias primas é grande. Isso porque as diferentes etapas desde a obtenção da matéria prima até o produto chegar na prateleira para o consumidor também são tributadas de maneira diferente, podendo resultar na arrecadação crescer mais do que o preço do bem industrial. Com uma tributação maior sobre as etapas de extração da matéria prima e produção do bem do que sobre a etapa de sua distribuição, a arrecadação vai subir bem mais do que o preço final do bem industrializado se o custo de produção (por exemplo, IPA-manufaturados) subir mais do que o custo da distribuição.

Um exemplo fácil para ilustrar o impacto da subida do IPA sobre a arrecadação considera um bem cujo preço final era originalmente composto por 1/3 de custo de produção e 2/3 de custo de distribuição. Se o preço no atacado subir 25% e o custo no varejo subir apenas 4%, podemos ter uma variação do custo final do bem (e.g., IPCA-duráveis) subindo 11%, enquanto a arrecadação do setor dispara em quase 60 %. Supondo um IPCA de 13%, o preço do bem durável deflacionado pelo IPCA pode cair, enquanto a arrecadação sobe quase 50% acima da inflação, o que é parecido com o que tem se observado olhando o IPA e o IPI, por exemplo.

  Custo Original R$ Aliquota Imposto R$ Variação de custo % Novo Custo R$ Novo Imposto R$ Variação da Arrecadação %  
Produção            0,50 25%            0,13 25% 0,625            0,16 25%
Distribuição            1,00 5%            0,05 4% 1,04            0,05 4%
Produto FInal            1,50 9%            0,13 11%            1,67            0,21 59%

O crescimento do IRPJ, por seu lado, reflete o salto das vendas a partir de meados de 2020 e abrange tanto os setores extrativos, como os industriais e o de varejo, já que as alíquotas nesse caso são as mesmas para todos os setores.  A previsão de analistas é de que 80% das empresas listadas terão aumento de lucro no terceiro trimestre de 2021 em relação a 2020, o qual não foi um ano uniformemente ruim para as empresas.  A lucratividade no terceiro trimestre cresceu nos setores de commodities (Vale, com aumento de 29% no lucro) e metais (Gerdau, +600%), energia e frigoríficos (Marfrig, + 148%), atingindo empresas industriais (Weg, +26%) e mesmo algumas que perderam inicialmente com o lockdown (Anbev, +57%).  Segundo a Receita Federal[1], a arrecadação do IRPJ em setembro de 2021 no setor de metalurgia cresceu 536% (+R$ 658 milhões) em relação ao mesmo mês de 2020 e no comércio varejista 60% (+R$ 508 milhões). Essas cifras são excelentes, mas tenderão a ser menores na medida em que a atividade arrefecer nos próximos trimestres, especialmente se os custos, como de energia, continuarem a subir.

Olhando para frente, vale observar a acomodação do preço do minério de ferro e de algumas commodities agrícolas e lembrar que o Banco Central do Brasil projeta um aumento da participação dos serviços na cesta de consumo dos brasileiros com a superação da pandemia, o que deslocará o consumo para setores da economia menos tributados. Esse deslocamento deverá aumentar o preço dos serviços, sendo compensado pela desinflação, ou mesmo deflação dos bens, inclusive manufaturados. Trata-se do fenômeno contrário ao ocorrido nos últimos 18 meses e forma um cenário, portanto, de desaceleração do IPCA e possível queda do IPA, com efeitos desfavoráveis para alguns impostos que têm crescido acima da inflação.

A arrecadação crescer acima do IPCA não deve, portanto, ser um fenômeno permanente, e sua implicação econômica tem sido limitada, já que a arrecadação total do governo central como proporção do PIB nominal não tem crescido significativamente.[2]  Ou seja, a necessidade de disciplina fiscal continua presente, até para se evitarem surpresas no resultado primário de 2022.

Gráfico 3 - Joaquim Levy
(Elaboração: Joaquim Levy)

[1] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2021/setembro2021/analise-mensal-set-2021.pdfA leitura

[2] https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:41791

*Artigo publicado originalmente na plataforma O Especialista, do Banco Safra.

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