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Ivan Sant’Anna: roubei do The New York Times

24 dez 2019, 11:36 - atualizado em 24 dez 2019, 11:36
New York Times Jornal Empresas
Durante os meses de dezembro de 1993 e janeiro de 1994, enquanto pesquisava para escrever Os Mercadores aluguei um apartamento em Nova York e frequentei exaustivamente a Biblioteca Pública da Quinta Avenida (Imagem: Pixabay)

Caro leitor,

Num dos capítulos de meu livro Os Mercadores da Noite, narro uma reunião de diretoria do Banco Centro Europeu de Lausanne, conhecido nos meios bancários de minha ficção como O Sindicato. Nesse encontro (de ficção, repito) o diretor de operações do banco, Jean Lesneur, informa a seus colegas:

“Senhores, a excelente operação de venda, a descoberto, de cobre, na Bolsa de Metais de Londres, só está sendo discutida nesta reunião porque, para proteger nossos interesses, foi necessário denunciar ao FBI a tentativa de explosão de uma ponte ferroviária na Zâmbia. Se alguns dos senhores não sabe, a Zâmbia é o segundo maior produtor mundial de cobre.”

“Dois espertalhões – um deles chama-se Rolf Duembier, é um alemão naturalizado americano, o nome do outro é Jay Aubrey Elliot, também americano e mergulhador profissional −, bem, esses dois aventureiros estavam prestes a destruir uma ponte ferroviária sobre o rio Zambeze. Como sobre a ponte passa todo o metal extraído em Zâmbia, se eles obtivessem sucesso, faltaria cobre em Londres. Nossas carteiras teriam sofrido grandes perdas. Os dois americanos estavam sendo pagos por alguns especuladores com posições compradas no mercado futuro da bolsa de metais. Graças a Otto (Otto Behr, responsável pelo setor de inteligência do Sindicato), o complô foi descoberto e denunciado.”

A esta altura o leitor desta crônica pode estar pensando: “imaginativo, esse Ivan; Zâmbia, rio Zambeze, squeeze de cobre na bolsa de metais…”

Nem tão criativo assim, confesso. Durante os meses de dezembro de 1993 e janeiro de 1994, enquanto pesquisava para escrever Os Mercadores aluguei um apartamento em Nova York e frequentei exaustivamente a Biblioteca Pública da Quinta Avenida.

Num dia, lendo a página 95 do exemplar do The New York Times do domingo 6 de novembro de 1966, encontrei a seguinte notícia:

“FBI PRENDE DOIS E OS ACUSA DE UM COMPLÔ ENVOLVENDO O COBRE DE ZÂMBIA – Por Arnold H. Lubasch. – Agentes federais prenderam ontem dois cidadãos americanos, acusando-os de uma conspiração bizarra para explodir uma ponte ferroviária vital na nação africana de Zâmbia.

Os dois foram acusados de planejar obter um lucro substancial em especulações de cobre causando uma séria escassez do metal. Zâmbia é o segundo produtor mundial de cobre.

A ponte é uma ligação chave na única ferrovia usada para transportar o cobre de Zâmbia para portos do leste africano e deles para o mercado mundial, disseram os agentes federais. Disseram também que a destruição da ponte poderia interromper seriamente o suprimento de cobre e elevar substancialmente seu preço.

O agente que anunciou a prisão disse a respeito do complô: ‘Quando eu fiquei sabendo, achei fantasioso. Parecia um romance barato. Fantasioso, mas aconteceu.’

Agentes do FBI fizeram as prisões, que foram anunciadas pelo procurador-geral Ramsey Clark.

O diretor do FBI, J. Edgar Hoover, identificou os dois suspeitos como sendo Rolf Duembier, vice-presidente e gerente em Nova York de uma metalúrgica alemã, e Jay Aubrey Elliot, um mergulhador profissional e capitão de iate.”

Deixando o The New York Times e voltando para o meu livro, vejo como conclui esse trecho, emendando o fato com a ficção:

“Todos (na reunião) se voltaram para Otto Behr, responsável pelo setor de inteligência. Este aproveitou o ensejo para acrescentar: ‘Felizmente, o FBI ficou com o mérito da descoberta da sabotagem. Mas o senhor Hoover tem ideia de onde veio a informação. Pode ser útil no futuro.’”

Portanto, vimos que já houve pelo menos uma tentativa de se manipular o mercado futuro de commodities através de um ato terrorista.

Por ocasião dos ataques de 11 de setembro de 2001, houve gente que especulou sobre a possibilidade de a Al-Qaeda, mais do que insider dos atentados, tivesse se aproveitado do fato para ganhar dinheiro em bolsa.

A Securities and Exchange Commission (SEC), equivalente à nossa CVM, e o FBI examinaram os registros dos mercados de puts da United e da American Airlines nos dias que antecederam a queda das torres para ver se alguém ou alguma instituição comprara essas opções de venda. Logo constataram que não e, mais, que isso seria impossível. Essas puts tinham liquidez baixíssima e ninguém poderia tê-las adquirido em grandes lotes.

As atenções das autoridades investigativas então se voltaram para o mercado futuro de S&P 500 (onde a liquidez é enorme) para ver se havia alguma posição vendida de origem suspeita. Não encontraram nada.

Ao contrário dos caras do cobre de Zâmbia, Osama bin Laden, Khaled Sheik Mohamed e Ramzi Binalshibh, os três masterminds do 11 de setembro, sequer imaginaram lucrar (dinheiro, bem entendido) com o ataque terrorista que abalou o mundo naquela terça-feira.

Com Saddam Hussein foi diferente. Nos dias que precederam a invasão do Kuwait por tropas iraquianas, ocorrido em 2 de agosto de 1990, os fundamentos do mercado de petróleo eram essencialmente baixistas. As cotas de produção, fixadas pela Opep, eram trapaceadas pelo Kuwait, pelos Emirados Árabes Unidos e pelo próprio Iraque. No entanto…

Vejam como me apropriei desse fato, totalmente verídico, em Os Mercadores da Noite, misturando-o com a ficção:

“As 2h da manhã de 2 de agosto, nove dias antes do vencimento das opções, divisões motorizadas iraquianas, totalizando mais de 100 mil homens, cruzaram a fronteira com o Kuwait e correram, celeremente, pela autoestrada de seis pistas que leva à capital.

Com a invasão, o preço do petróleo disparou. Em poucos dias, pulou de 18 para 30 dólares. O Sindicato comprara opções de strike 20, 21 e 22 dólares e, mais uma vez, obteve um grande lucro para suas carteiras graças às suas informações privilegiadas.”

Esse tipo de livro, que rouba da vida real fatos e gente de carne e osso para uma ficção, chama-se roman à clef. É característico de muitos escritores de romances e novelas tais como dois mestres contemporâneos do suspense, o galês Ken Follett e o inglês Frederick Forsyth.

Aposto que eles também folhearam jornais e revistas antigos para descobrir seus personagens.

Um abraço,