Ivan Sant’Anna: a Polícia Federal continuará independente
Caro(a) Leitor,
Com exceção do cumprimento de decisões judiciais (às quais todas as pessoas, empresas e instituições são submissas), mesmo com a escolha de alguém que comungue com as ideias da família Bolsonaro para a direção-geral da Polícia Federal, o órgão continuará independente.
Por que estou escrevendo sobre isso?
A resposta é simples: as atitudes da PF terão influência no comportamento do mercado nos próximos meses, por causa de suas consequências políticas.
Para entender o presente e o futuro da Polícia Federal, é bom que se conheça o seu passado. De início, o nome era DFSP (Departamento Federal de Segurança Pública). Mas, para efeito deste artigo, citarei sempre como sendo PF.
Quando o Rio de Janeiro era capital da República, a maior parte das polícias cariocas era federal. Havia exceções, como a Guarda Noturna, subordinada ao prefeito. Só que o prefeito não era eleito e sim escolhido pelo presidente da República.
Ou seja, eram todos federais.
Pena que, com as exceções de praxe, os delegados, investigadores e agentes eram violentos ou corruptos, quando não ambas as coisas.
No primeiro grupo, o dos brutamontes, destacavam-se os integrantes da Polícia Especial, com uniforme cáqui e quepe vermelho.
Me lembro bem deles. Eram transportados em caminhões, sendo que na carroceria havia dois bancos compridos, um de costas para o outro.
Ao chegarem para dissolver alguma manifestação ou conter um distúrbio, desciam todos ao mesmo tempo e já saiam, cassetete à mão, batendo nas pessoas.
Isso não era nada comparado ao que faziam em sua sede no morro de Santo Antônio, junto ao largo da Carioca.
O caso mais emblemático foi o de Arthur Ernst Ewert, militante comunista alemão, que desembarcou em 1934 no Brasil, com um passaporte norte-americano onde constava o nome falso de Harry Berger, pelo qual se tornou conhecido aqui.
Durante a ditadura Vargas, Berger ficou longo tempo acorrentado ao corrimão da escada do prédio do largo da Carioca. Era praxe entre os agentes da PE (não confundir com Polícia do Exército) que por ali subiam ou desciam, aplicar um chute ou bofetão no prisioneiro.
Quase todos os dias, Harry Berger era levado para uma sessão de torturas. Após ter enlouquecido, foi expulso do país. Mas isso só aconteceu em 1947, durante o governo democrático do general Eurico Gaspar Dutra.
Quem quiser saber mais sobre essa história, procure num sebo “Falta alguém em Nuremberg”, livro escrito pelo jornalista David Nasser.
Ou então compre numa livraria “Getúlio 1930-1945”, de Lira Neto, publicado pela Companhia das Letras em 2013.
Transcrevo um trecho da página 258 de “Getúlio…”:
“No Rio de Janeiro, o caso mais brutal de que se tinha notícia era o de Ernest Ewert (Harry Berger), colocado em uma espécie de jaula, no socavão debaixo de uma escada, de onde não podia sair um único instante a não ser para ser interrogado – e torturado.
Ewert (Berger) foi vítima sistemática de choques elétricos na cabeça, no pênis e no ânus, além de sofrer queimaduras com pontas de cigarro e charuto por todo o corpo.
Dormia no chão, onde era obrigado a comer em meio aos próprios excrementos. Não podia tomar banho e jamais lhe permitiam trocar de roupa.”
Quando, em 1960, a capital do país foi transferida para Brasília e a cidade do Rio de Janeiro tornou-se Estado da Guanabara, os delegados e agentes das diversas polícias federais puderam optar entre ficar no Rio ou ir para o planalto, onde seus diversos segmentos foram unificados.
Não era uma polícia respeitável, principalmente no aspecto técnico e jurídico.
Em 1964, o Ministério do Planejamento elaborou um estudo através do qual nossa PF seria uma instituição nos moldes do FBI americano, como acabou acontecendo.
Para começar, só podia fazer concurso para ser agente do órgão quem tivesse curso superior, exigência que permanece até hoje.
Nos dez primeiros anos do regime militar, todos os diretores-gerais da Polícia Federal foram militares de alta patente do Exército. Vale dizer que, de certo modo, a PF era subordinada às Forças Armadas.
Mais tarde surgiram os primeiros diretores-gerais civis, sendo o mais expressivo deles Romeu Tuma, que ficou no cargo entre 1982 e 1992.
A partir de 2014, a direção da PF passou a ser exclusiva de delegados da instituição, da classe especial, último nível de carreira.
É quase impossível, para um diretor-geral, tomar decisões contrárias à opinião da maioria dos delegados, que costuma ser expressada através da ADPF – Associação dos Delegados da Polícia Federal, uma instituição civil sem nenhum vínculo com o governo.
Como as ordens expedidas pelo novo diretor-geral que virá serão severamente escrutinadas pela imprensa e pela ADPF, é bastante improvável que ele possa exercer o cargo em benefício da família Bolsonaro.
Em todo caso, caro amigo leitor, não custa ficar de olho. Qualquer desvio de rumo de uma trajetória que começou na imundície de um sopé de escada, onde um homem indefeso era humilhado e torturado, será obstada pela Justiça, pelo Congresso Nacional e pela opinião pública.
Nesse caso, a possibilidade do impeachment do presidente Jair Bolsonaro ganhará força.
Os acontecimentos dos últimos dias (com a nomeação e “desnomeação” relâmpago de Alexandre Ramagem para a PF), mostram que essa hipótese (a do impeachment) será boa para o mercado de ações, que detesta incertezas.