Economia

Inflação agita política na região mais desigual do mundo

13 set 2022, 7:05 - atualizado em 13 set 2022, 7:05
Lula Jair Bolsonaro e Ciro Gomes
A alta de preços domina a eleição no Brasil, onde o ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva tenta destituir o titular, Jair Bolsonaro (Imagem: REUTERS/Pilar Olivares)

Governos de toda parte estão sob imensa pressão para amortecer o impacto dos preços crescentes de alimentos e combustíveis.

Na América Latina, a crise arrisca acender um barril de pólvora.

Do México ao Brasil, a inflação alta aumenta a distância entre ricos e pobres em uma região que já é a mais desigual do mundo.

E a reviravolta política que ela tem gerado pode ser uma prévia do que está por vir, à medida que autoridades no mundo todo lutam para atender a demandas por mais gastos sociais.

Em toda a América Latina, uma classe média que estava em expansão está vendo suas perspectivas se deteriorarem. Para os mais pobres, a última onda de aumentos de preços ao consumidor será um ponto percentual maior do que para os mais ricos, segundo estimativas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Um terço da população da região deve ficar abaixo da linha da pobreza, vivendo com menos de US$ 1,90 por dia.

A evidência de que o impacto está pesando mais fortemente sobre os mais pobres já se converte em agitação social.

No Panamá, manifestações que bloquearam rodovias e portos provocaram o congelamento dos preços de 72 bens essenciais em julho.

Greves no Peru no mesmo mês levaram à promessa de mais ajuda aos pobres. O governo do Equador negocia com organizações indígenas depois da eclosão de tumultos relacionados ao aumento do custo de vida. Uma reclamação comum é que conseguir comprar alimentos básicos virou privilégio dos ricos.

Aumentos de juros de 2,5 pontos percentuais ou mais em pelo menos sete dos países da região este ano ainda não fizeram muita diferença, e resta aos governos implantar cortes de impostos e programas sociais às custas de finanças públicas frágeis.

No entanto, tentar resolver o problema com mais gastos pode sair pela culatra, pesando sobre as moedas e elevando ainda mais os preços dos alimentos, de acordo com Adriana Dupita, economista para a América Latina da Bloomberg Economics.

“Os líderes latino-americanos estão lutando para aliviar a angústia da população com relação aos preços com as ferramentas que têm à mão”, disse ela.

Eleitores no Peru, Chile e Colômbia optaram por mudanças radicais nos últimos 18 meses, após a pandemia trazer a tona a indignação com desigualdades de longa data. A disparada da inflação, com gargalos nas cadeias globais de suprimentos e a invasão russa da Ucrânia, só agrava a situação.

“Essa rodada de inflação é ainda mais prejudicial para os níveis de pobreza e distribuição de renda”, disse Ernesto Revilla, economista-chefe para a região no Citigroup. “Está claro que há maiores probabilidades de agitação social agora.”

A alta de preços domina a eleição no Brasil, onde o ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva tenta destituir o titular, Jair Bolsonaro.

Bolsonaro, cujo primeiro mandato foi ofuscado por uma gestão da pandemia que deixou mais de 650.000 brasileiros mortos, demorou para acordar para o fato de que as pessoas estão sofrendo e, com elas, suas chances de reeleição. Em agosto, o aumento do Auxílio Brasil foi implementado às pressas, junto com cortes de impostos sobre bens, incluindo gasolina.

Pode ser tarde demais para convencer Jéssica Couto, de 32 anos.

Desempregada, ela depende de bicos de limpeza que em um bom mês podem render R$ 500 reais. Isso permite que ela consiga pagar pelo gás de cozinha, arroz, feijão e óleo. De vez em quando ela compra ovos e salsichas. Dessa cesta, apenas feijão e arroz estão mais baratos que no ano passado, mas isso mal compensa o aumento de 18% no gás.

Os efeitos desses aumentos são sentidos de forma desproporcional entre os pobres, que gastam quase um terço de seu orçamento mensal em alimentos e bebidas.

Para os mais ricos, o percentual é de 13%. A fome atinge agora 33 milhões de pessoas no Brasil, o maior número desde pelo menos 2004.

As consequências políticas são explosivas em um ano eleitoral: Lula lidera em todas as pesquisas para o primeiro turno em 2 de outubro.

Para os mais ricos, o percentual é de 13%. A fome atinge agora 33 milhões de pessoas no Brasil, o maior número desde pelo menos 2004 (Imagem: REUTERS/Susana Vera)

A inflação pode ter atingido o pico, depois de se desacelerar para um dígito em meados de agosto pela primeira vez em um ano. Bolsonaro está apostando que, à medida que suas medidas entram em vigor, ele diminuirá a diferença em relação a Lula, que sugeriu aos eleitores que “peguem” o dinheiro “e comprem o que comer, e na hora de votar dê uma banana neles e votem para a gente mudar a história desse país”. As mulheres, sobretudo as mulheres negras, estão entre as mais atingidas pela desigualdade, e Bolsonaro tem dificuldade em atrair esse segmento da população.

Jéssica diz que espera que as coisas melhorem quando receber o Auxílio Brasil, criado no governo Lula e agora expandido por Bolsonaro em um esforço para melhorar suas chances de reeleição. O cheque ajudará, diz ela, mas não o suficiente para garantir seu voto. De qualquer forma, ela ainda está esperando para ver se terá direito ao benefício.

Jefferson Nascimento, coordenador de economia da Oxfam Brasil, usa uma analogia do futebol para descrever a dinâmica da campanha. “Como é que você vai provar agora nos 45 do segundo tempo que você estava fornecendo políticas públicas para essa população que mais precisava delas?”, pergunta. “É muito em cima da hora.”

Empossado como primeiro líder de esquerda de seu país em agosto, Petro enfrenta uma série de problemas, mas poucos são mais difíceis ​​do que a crise da gasolina.

Durante décadas, o contrabando permitiu que os colombianos da região nordeste que faz fronteira com a Venezuela usufruíssem de combustível barato do país vizinho, onde era vendido a uma fração de um centavo de dólar por galão, o preço mais baixo do mundo. Quando o então presidente dos EUA, Donald Trump, reforçou as sanções contra a Venezuela em 2019, as refinarias pararam por falta de peças de reposição, e o contrabando de gasolina começou a fluir na direção oposta.

Hoje, uma lata de gasolina de 23 litros pode ser comprada por cerca de US$ 14 no lado colombiano e revendida por US$ 37 na Venezuela, segundo um traficante de combustíveis que falou perto da entrada de uma rota de contrabando no deserto de Guajira, a algumas centenas de metros da fronteira, onde jovens em motocicletas levantam nuvens de poeira ao percorrem o trajeto para lucrar com as diferenças de preços de tudo, desde coca-cola a drogas ilegais e geleiras cheias de peixe fresco.

“La Guajira sempre viveu do contrabando”, disse o homem, que pediu para não ser identificado devido à natureza de suas atividades. “Ninguém tenta te impedir, eles só pedem algum dinheiro.”

Petro assumiu o cargo com inflação a 10,8%, a taxa mais alta em mais de duas décadas. A inflação para os mais pobres é ainda mais alta, em 12,7% — e pode estar prestes a piorar, já que o governo procura eliminar subsídios à gasolina que o ministério das finanças diz estarem custando o equivalente a cerca de 3% do PIB por ano.

Altos funcionários do ministério dizem que os subsídios introduzidos pelo governo anterior beneficiam os guerrilheiros e clãs que controlam o contrabando, e eles terão que ser eliminados se Petro quiser cumprir as promessas de campanha de aumentar os benefícios sociais.

Mas Petro sabe que isso é um risco enorme apenas algumas semanas após protestos explodirem nos vizinhos Equador, Panamá e Peru. A mesma raiva contra a inflação que o ajudou a conquistar a presidência pode facilmente se voltar contra ele.

Em Riohacha, uma cidade na costa caribenha da Colômbia perto da fronteira com a Venezuela, a crise do custo de vida afeta fortemente a população.

No Mercado Velho, onde cabras recém-abatidas pendem de ganchos, os consumidores reclamam do alto custo de produtos básicos, como óleo de cozinha, tomate, banana e arroz. O café é vendido em sacos de 50 gramas e o óleo em garrafas de 220 mililitros, para quem não consegue comprar mais.

“Você precisa ser milionário para comer ovos hoje em dia”, disse a consumidora Angie Mozo, de 23 anos.

Os preços dos combustíveis estão embutidos no custo de quase todos os outros bens, e os grupos mais afetados pela alta — taxistas e caminhoneiros — são exatamente as pessoas com mais poder de paralisar rodovias e cidades. As expectativas de que Petro faça algo são altas.

“Esperamos uma mudança para melhor, que tudo melhore”, disse Daniel Lorgia, 21, um eleitor de Petro que vende frutas na beira da praia. Uma caixa de bananas que custava cerca de 25.000 pesos (US$ 6) no atacado no início do ano agora custa 40.000; o custo dos melões dobrou, disse ele.

“A maioria das pessoas aqui votou no Petro para ver se os preços baixam”, disse Nelson Delgado, um feirante que vende frutas e legumes no mercado. Ele não disse o que aconteceria se eles não baixarem.

A inflação não está atingindo apenas a América Latina. Na Europa, que não sofria uma disparada de preços como a atual desde a década de 70, protestos exigindo a intervenção do governo ocorreram de Londres a Praga. Uma pesquisa global realizada para a Open Society Foundations em julho e agosto descobriu que 80% dos entrevistados no Brasil, Colômbia e México “muitas vezes se preocupam” que a família passe fome, seguidos por 77% na África Subsaariana e 56% na Índia. Mesmo nos EUA, 39% disseram que se preocupam com a fome até certo ponto.

No México, a proporção foi de 83%. No entanto, o governo conseguiu convencer os eleitores de que é a melhor opção.

O presidente Andrés Manuel López Obrador ganhou reputação de austeridade desde sua vitória esmagadora em 2018, ao gastar uma fração de seus pares durante a pandemia. Mas ele não mediu gastos para combater a explosão nos preços ao consumidor, com cerca de US$ 22 bilhões destinados a subsídios à gasolina este ano.

Seu índice de aprovação ficou acima de 50%, e seu partido Morena tenta conquistar uma das últimas áreas controladas pela oposição: o Estado do México, reduto do Partido Revolucionário Institucional. Se o Morena vencer a eleição para governador no estado ano que vem, seria um sinal para muitos de que a oposição está morta.

Em 2017, pessoas no Estado do México bloquearam rodovias e invadiram supermercados em reação a um aumento nos preços da gasolina. A indignação não chega a tanto hoje em dia, mas isso não significa que a população não esteja sofrendo.

Maria Ofelia Cobos García, de 63 anos, suspira ao olhar frutos do mar salgados em um mercado em Toluca, capital do estado. O preço do camarão trazido do norte subiu para US$ 19 o quilo, e os peixes prateados do tamanho de um dedo subiram 75%. Depois de meses no prejuízo, seu chefe cortou seu salário.

“Nós não vendemos nada, e os produtos todos sobram”, disse ela. “Mas não acho que os preços estejam subindo por causa daquele senhor.”

López Obrador tem assegurado diariamente aos eleitores que seu antecessor teria se saído muito pior no atual clima econômico. Máximo Jaramillo-Molina, do Instituto de Estudos sobre a Desigualdade, aponta que, apesar de toda a percepção de generosidade, o presidente não gastou mais, mas distribuiu ajuda mais amplamente, o que significa que os mais pobres acabaram recebendo menos.

Em partes do Estado do México, incluindo áreas industriais mais ricas e de classe média próximas à Cidade do México, parte de seu encanto se esgotou. Em Naucalpan, onde os moradores votaram no Morena nas eleições locais em 2018, o partido voltou à oposição em 2021.

Bertha Bennetts, 56, que administra um restaurante argentino em Naucalpan, parou de dar limões a menos que as pessoas peçam, e pediu a seus fornecedores de carne e vinho que a deixassem pagar fiado diante da ausência de empréstimos ou assistência do governo. Outras pessoas cujos negócios sofrem ficaram desiludidas com as autoridades eleitas, mas ela não arrisca prever o resultado da próxima eleição.

“Se a maioria das pessoas não estiver feliz, vão buscar uma mudança”, disse.

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