Governo de São Paulo contratou empresa incluída na “lista suja” do trabalho escravo
Uma construtora ganhou um contrato com o governo do estado de São Paulo apesar de estar incluída na chamada “lista suja” do trabalho escravo, revela a Thomson Reuters Foundation, gerando pressão de autoridades para a criação de leis que garantam que as empresas não escapem da lista.
Considerada uma das mais poderosas ferramentas no combate ao trabalho escravo, a lista atualmente tem cerca de 180 empresas que exploraram trabalho escravo, conforme apurado por auditores fiscais do trabalho.
As empresas que fazem parte da lista não podem obter empréstimos de bancos públicos e estão sujeitas a restrições em suas vendas.
A lista, criada em 2004, também é usada por bancos privados para determinar risco de crédito e por compradores internacionais que se preocupam com suas cadeias de fornecedores.
Mas uma análise baseada em documentos obtidos com exclusividade mostra que a EMAE, uma empresa estatal do governo de São Paulo, concedeu um contrato à Soebe Construção e Pavimentação em julho de 2019, cerca de nove meses depois que a empresa foi incluída na lista por submeter 10 trabalhadores à escravidão.
Embora não seja ilegal a contratação pelo governo de empresas incluídas na lista, auditores fiscais e procuradores do trabalho disseram que esse é mais um exemplo das limitações da lista e, além disso, da necessidade de que os estados aprovem leis para que a ela seja mais do que uma “ferramenta de transparência”.
“Os governos dos estados precisam colocar em lei que não podem contratar (empresas na lista suja)”, disse a procuradora Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).
O Ministério da Economia, que publica a lista, não respondeu às perguntas da Thomson Reuters Foundation.
“(O governo) está dizendo que ele não vai olhar a lista suja na hora de contratar”, disse a auditora fiscal do trabalho Liane Durão.
“Você está… incentivando (o trabalho escravo)”, acrescentou Durão, uma das auditoras que descobriu que os trabalhadores da Soebe não recebiam pagamento e viviam em condições precárias, sem camas e sem água encanada.
CONTRATO COM O ESTADO MANTIDO
A EMAE, empresa estatal que gerencia usinas hidrelétricas e barragens em São Paulo, disse que vai começar a exigir que potenciais empresas subcontratadas mostrem que não foram incluídas na lista antes de participar das licitações.
No entanto, a estatal afirmou que a licitação da Soebe não foi ilegal, e uma porta-voz do governo informou que o contrato com a empresa ainda estava válido.
A Soebe, que venceu a licitação de R$ 13 milhões em parceria com uma outra empresa para fazer o desassoreamento de parte do Rio Pinheiros, negou ter usado trabalho escravo e disse que os trabalhadores resgatados eram empregados de uma de suas subcontratadas.
“A inclusão do nome da empresa Soebe foi injusta, equivocada e não foram observadas as garantias constitucionais do devido processo legal e contraditório”, disse a empresa em declaração enviada por e-mail.
A empresa foi removida da lista em fevereiro após ter um pedido de liminar concedido, suspendendo a inclusão da empresa pelos auditores fiscais do trabalho.
Ela pode ser incluída novamente caso perca um recurso contra a descoberta de trabalho escravo pelos auditores fiscais.
“Não adianta a gente fazer todo este trabalho, e vir uma liminar e retirar isto”, disse a auditora fiscal Liane Durão.
“Perde quase que totalmente o sentido, o trabalho”.
No ano passado, 1.054 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão, uma diminuição em relação ao ano de 2012, com 2.775 trabalhadores encontrados, de acordo com dados do governo.
Desde 1995 foram descobertos pelos auditores fiscais do trabalho cerca de 54.000 trabalhadores nessas condições.
O Índice Global de Escravidão de 2018 estima que, dentro de uma população de cerca de 205 milhões, cerca de 369.000 pessoas vivem sujeitas à escravidão no Brasil.
LIMINARES
Dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação também revelaram que cerca de 130 empresas, incluindo a Soebe, usaram liminares desde 2004 para impedir sua inclusão na lista suja até o julgamento do recurso ou para terem seu nome excluído da lista.
As empresas que são descobertas pelo governo usando trabalho escravo são incluídas na lista por dois anos, e depois desse período são removidas se não forem descobertos novos casos de escravidão contemporânea.
Muitas empresas que buscaram liminares nos últimos anos disseram tê-lo feito porque não tiveram a oportunidade de contestar a decisão, e temiam as consequências financeiras de sua inclusão na lista sem o devido processo legal.
Algumas afirmaram que as condições de trabalho não representavam escravidão.
Outras disseram que não deveriam ter sido responsabilizadas, já que os trabalhadores não eram contratados diretamente por elas, mas por subcontratadas.
No Brasil, a escravidão é definida como trabalho forçado, mas também inclui a servidão por dívidas, condições degradantes de trabalho, longas jornadas que representam um risco para a saúde ou trabalho que viole a dignidade humana.
Embora não haja ilicitude em relação ao uso de liminares, procuradores e juízes afirmam que a prática enfraquece a lista, já que algumas empresas evitam a exposição de casos de trabalho escravo.
“MINADO”
A chefe do Conaete, Lys Sobral Cardoso, afirma que juízes muitas vezes são “rápidos” na concessão dessas liminares.
“Nos surpreendemos com a natureza de algumas decisões”, disse ela. “Das que acompanhei, não concordei com nenhuma”.
Das cerca de 130 empresas que obtiveram liminares, pelo menos 23 foram mais tarde inocentadas pela justiça da acusação de trabalho escravo, derrubando as conclusões iniciais dos auditores fiscais do trabalho.
Muitos juízes desconhecem a lista suja e acabam decidindo em favor das empresas e contra os auditores fiscais mediante a concessão de liminares, disse Paula Nunes, advogada da Conectas Direitos Humanos, organização sem fins lucrativos que atua no combate à escravidão.
“As empresas entram com ações judiciais alegando que não tiveram possibilidade de se defender, quando não é verdade”, disse Nunes.
“Estes mecanismos de judicialização vão minando este instrumento, que é muito importante”.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não respondeu ao pedido para comentar.
O órgão governamental disse no ano passado que todos os novos juízes do trabalho devem participar de cursos sobre o trabalho escravo, como parte de uma iniciativa para aumentar a conscientização sobre o problema e sobre a importância da lista suja.
O senador Paulo Paim, que propôs um projeto de lei para proibir que contratos públicos sejam concedidos para empresas incluídas na lista, arquivado em 2018, apelou para que a EMAE reconsiderasse sua relação com a Soebe.
Paim, presidente da comissão de direitos humanos do Senado, disse temer que pouco possa ser feito para impedir o uso de liminares.
“Estamos falando de milionários, que podem escapar (da exposição por) crimes hediondos e escravidão”, acrescentou.