Frigoríficos não comentam, mas se preparam para exigências da China de boi sem passivo ambiental
As vendas de carne bovina brasileira in natura para a Europa não cresciam, despencaram este ano e não devem voltar aos mesmos níveis então baixos. Para os Estados Unidos, nenhum quilo, e dificilmente o será. Se esses dois destinos são inelásticos, e os demais são periféricos no ranking atual, será olhando a China, no futuro, que os frigoríficos brasileiros anunciam e dizem investir em protocolos mais rígidos na originação de bois de áreas sem passivo ambiental?
Há uma perspectiva, discutida entre observadores e analistas em comércio internacional, de que o maior comprador do produto brasileiro venha a adotar medidas mais restritivas de maior controle sobre seus fornecedores, a exemplo do ensaiado pelos europeus e dos Estados Unidos, em caso de vitória de Joe Biden nas eleições do próximo mês. A rastreabilidade da cadeia bovina chegará lá.
Há quem não descarte, até, que Pequim vá acabar sendo pressionado pelos seus dois maiores compradores globais, quando esta agenda ambiental começar a fazer parte de negociações bilaterais, ainda que indiretamente implique terceiros países.
“A máquina exportadora chinesa precisa da Europa e dos Estados Unidos, ainda que dependa da carne brasileira, de modo que não se descarta que esses destinos possam exercer alguma influência, passado todo o atual contencioso comercial com os americanos”, diz Michel Alaby, consultor, entre outros, do Programa das Nações Unidas para Países em Desenvolvimento (Pnud/ONU), para assuntos de conteurtrade, e durante muitos anos envolvido em negociações comerciais com os árabes, como executivo da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira.
Só para corroborar o peso apenas dos Estados Unidos, o superávit chinês com esse país foi de US$ 323,3 bilhões em 2018, ano no qual a guerra comercial teve início, enquanto os embarques totais do Brasil, de todos os bens, em 2019, renderam US$ 224 bilhões.
Dos principais exportadores brasileiros, JBS (JBSS3) e Minerva (BEEF3) se recusaram a comentar sobre esse contexto, e a Marfrig (MRFG3) foi genérica, apenas acentuando, em nota, que “vemos essa pressão internacional de forma positiva e procuramos nos antecipar a esse movimento com diversas ações (…)”. As entidades de classes da carne bovina, Abiec e Abrafrigo, também evitaram responder.
Jeito chinês
Não surpreende, num momento sensível como o atual querem distância de qualquer bola dividida – como sempre – com governo, ongs e, principalmente, produtores rurais, especialmente depois das reclamações destes contra a formação da Coalização Brasil Clima Florestas e Agricultura, que resultou em rompimento da Aprosoja BR com a Abag, por exemplo.
Mas essa tendência está correndo e não há dúvida que qualquer player global que se preze não tenha esse cenário sendo desenhado. Não se sabe o prazo, muito menos como.
Marcos Jank, que durante alguns anos foi o CEO da Asia-Brazil Agro Alliance, atuando, desde Singapura, na linha de frente de interesses do agronegócio brasileiro, inclusive de proteína animal, pensa que a China “vai querer esse papel de bom moço, embora ainda não tenha habilidade para isso”, porque “quer ter mais peso na Organização Mundial de Comércio” (OMC).
A internacionalização de empresas chinesas do agronegócio, tal qual a Cofco, acabará também internalizando essa agenda ambiental que é cobrada do Brasil pela Europa, avalia o professor e coordenador do Centro Insper Agro Global.
“Mas vai fazer do jeito dela e na velocidade dela”, diz, acreditando que o país não vá “comprar a agenda” dos outros. Tanto porque ainda tem muitos problemas ambientais próprios e a questão do uso da terra não entrou na lista de prioridades, mais não fosse pela sua dependência externa – e brasileira – de carnes e soja.
Trade off, por enquanto, ao modo chinês.
Dependência
A ‘Brasil dependência’ em carne bovina, dos chineses, é a mesma da ‘China dependência’ que os produtores brasileiros têm. Em cinco anos, desde que a China (sem Hong Kong) estreou no mercado brasileiro, o aumento das vendas pode chegar a inimagináveis 802%, se a marca bater, até dezembro, em 850 mil toneladas (530 mil/t até setembro), como aventou a consultoria Agrifatto em relatório recente. Terá dado também mais 71% sobre as exportações do ano passado.
A China precisa da proteína daqui, e muito – longe ainda de voltar a prover seu mercado interno abalado com o crash da produção de suínos pela peste africana -, mas tanto ou mais necessita dos países centrais para suas exportações.
E consegue exercer pressão sobre seus fornecedores quando bem quiser. O noticiário está cheio de informações sobre como os chineses estão forçando menores preços sobre as carnes importadas, desde o meio do ano, mais acentuadamente.
Algum frigorífico ousou discutir os termos?
A China também barrou importações de asas de frango sob suspeita, nunca provada, de hospedarem o vírus da covid-19, contrariando negativas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mudou alguma coisa? O governo brasileiro ameaçou de entrar na OMC contra as Filipinas, que pegou carona, porém com a China ficou naqueles proverbiais “estamos esperando comunicado oficial e reiterando nossos controles”.
Não há nenhuma alternativa de mercado que chegue perto de sustentar qualquer resfriado que se abata sobre as vendas brasileiras para lá. No ranking dos importadores, tirando Hong Kong, em segundo, o resto é figurante, mesmo considerando o bloco europeu com 120 mil toneladas em 2019 (este ano despencará), em média que não crescia, ainda que pague mais. E com o acordo do Mercosul fora da agenda da União Europeia.
Acordo de Paris
Naturalmente que ninguém espera uma guerra aberta ao Brasil pelos chineses, menos ainda nos próximos tempos, mas todo cuidado é pouco adverte Michel Alaby, da Alaby & Associados. O poder de persuasão comercial de Pequim pode ser pesado um dia.
Normal, portanto, que os agentes desse mercado já prestem atenção.
O ex-embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa, e presidente da Abitrigo, lembra que a “China já começou a dar mais força às políticas nessas áreas, como demonstram os compromissos ampliados no Acordo de Paris e a tendência, a médio prazo, será de Pequim se juntar às medidas restritivas já adotadas por outros países”.
Com Biden na Casa Branca, no lugar de Donald Trump, os Estados Unidos se juntarão à linha de frente das políticas e das medidas comerciais contra o desmatamento, as queimadas, os garimpos ilegais na Amazônia e a forma de relacionamento com as comunidades indígenas, destaca Barbosa.
Não se espera que o governo americano, sob o Democrata, vá ser muito menos beligerante comercialmente com Pequim, mas até por isso deve preocupar.
A agenda ambiental pode fazer parte conexa e imediata, compulsoriamente, e a China se ver obrigada a acelerar o controle de sua responsabilidade direta e indireta sobre o clima global.
“O agronegócio brasileiro vem se adaptando a um novo modelo de agricultura, do século 21, no qual é possível aumentar a produtividade sem ampliar a área agrícola. A JBS e a Marfrig, por exemplo, já prometeram que irão rastrear todo o gado que compram nos próximos anos. A economia segue este caminho. Se desviarmos, o risco é ver mais resistência e até fuga de investimentos em busca de iniciativas de baixo carbono fora do Brasil. O país perde o acesso a mercados externos ou a portfólios de investimentos que demandem por esse perfil”, complementa Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds).