Felipe Miranda: Você vai deixar falarem isso de você?
“Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro,
transformam um país inteiro num puteiro,
pois assim se ganha mais dinheiro.”
O Tempo Não Para – Cazuza
“Filtro branco é de manicure, hein?”
Na minha adolescência e, para ser mais preciso, também no início da minha fase adulta, fui um cara meio casca-grossa. Naquele dia, porém, eu precisaria descer uns dois ou três degraus.
Estávamos indo jogar bola no Gororós, lá pelos idos de 2003. Gororós é um vilarejo bem no interiorrrr de Minas Gerais, onde — posso lhe garantir — o ditado “brasileiro é um povo bonito” não se aplica. Pertence ao distrito de Dom Joaquim, com umas 50 casas, sendo famoso na região pela sua festa de padroeiro, em homenagem a Nossa Senhora Sant’Ana, comemorada em torno do 26 de julho. “Isto aqui é o Brasil. Não tente entender este país olhando da sua janela no Alto de Pinheiros”, papai sempre me aconselhava.
Se eu quisesse sobreviver ao lugar em que só se admitem filtros marrons-claros nos cigarros, onde os fracos não têm vez, precisaria me adaptar àquela realidade. Rapidamente, percebi que os fumantes de cigarro Hollywood jamais se adaptariam a mim — a realidade é o que ela é. Para ganhar aquele jogo — e além de casca-grossa, eu era muito competitivo — precisaríamos descer de volta a porrada nos caras. Não porque queríamos, apenas para equilibrar um pouco as coisas.
Eu já havia recebido vários rótulos na minha vida, dos piores possíveis. Pô, mas “manicure”? Nada contra essa linda profissão, que, aliás, costuma guardar um perfil empreendedor bacana; só não acho que combina comigo.
Tomamos aquilo como um choque antifrágil e resolvemos engrossar ainda mais. Apanhamos e batemos respeitosamente — o futebol tem suas próprias leis. Ganhamos várias cicatrizes, hematomas e um placar de 2×1 a nosso favor.
Só vencemos porque adaptamos nosso jogo a uma nova realidade, numa mutação que nem nós mesmos pensávamos ser capazes de fazer.
Se as coisas mudam, eu mudo. E você?
Como talvez você tenha percebido, o cenário de investimentos mudou no Brasil. Os juros baixos vieram para ficar. Algumas pessoas possivelmente ainda não se deram conta do tamanho do problema que têm nas mãos porque os retornos passados na renda fixa ainda estão enormes como resultado do fechamento recente da curva de juros. Assim, ainda sem sentir na pele o baixo resultado de suas aplicações nesse segmento, mantêm-se inercialmente sentados em posições grandes de títulos públicos ou, ainda pior, papéis de crédito privado que, sem volatilidade diária, parecem oferecer risco zero.
Ocorre que, cedo ou tarde, verão seus retornos minguando. Isso, somado ao acesso facilitado pelas plataformas de investimento para a pessoa física às mais variadas formas de aplicação, compõe uma interessante e estrutural nova realidade.
Nos próximos meses e anos, veremos uma inexorável grande caminhada em direção às aplicações de maior risco, como a Grande Migração de zebras e gnus no sentido horário do Serengeti africano — por favor, não se ofenda.
Diz-se por aí que, nesse processo, será fundamental para as plataformas de investimento desenvolver um bom suitability, ou seja, dar ao investidor acesso ao produto alinhado adequadamente ao seu perfil, com o devido conhecimento do produto e sem a assunção de riscos não condizentes com as características idiossincráticas daquele cliente, de sua tolerância a risco, de seu horizonte temporal e de suas vontades e aflições pessoais no geral.
Olha, eu concordo que os bancos e as corretoras devem melhorar nesse sentido. O investidor deve ser bem informado de cada atributo daquele produto que lhe é oferecido, seu nível de liquidez, seu risco, seu potencial de retorno em cada cenário. Tudo bem detalhado, tim-tim por tim-tim. Nenhum investidor deve comprar algo desalinhado com seu perfil. Ok.
No entanto, existe um outro risco aqui também. Se, ex-ante, ainda quando o cliente não conhece o mundo, querem pregar-lhe na testa um rótulo de “conservador”, “moderado” ou “arrojado”, incorremos na chance de limitar o investidor a determinado escopo, como se ele não pudesse se desenvolver ao longo do processo. Será mesmo que devemos condená-lo a uma determinada jaula a priori, rotulando o sujeito e impedindo que ele acesse, mesmo que paulatina e gradualmente, outros tipos de aplicação?
Na tentativa de proteger o investidor, acabamos impedindo que ele mesmo se desenvolva. Ou até mesmo, curiosamente, fazendo com que ele corra mais riscos. De boas intenções o inferno está cheio. Nada pior do que a frase “deixa eu te ajudar”. Nunca vou me esquecer da fala de Contardo Calligaris: “Odeio as pessoas que dizem que fizeram tal coisa pelo meu bem. Eu gosto quando fazem pelo meu mal. Quando for pelo meu bem, deixa que eu mesmo escolho”. O Estado insiste em querer decidir pelas pessoas o que é melhor para elas. Se elas mesmas não sabem, imagine um terceiro.
Vou dar dois exemplos absolutamente reais.
Numa determinada situação, há uns dois anos mais ou menos, sugeri uma put (opção de venda) para os assinantes do Carteira Empiricus — era um momento de alguma euforia, a volatilidade estava baixa e eu queria proteger os ganhos recentes do portfólio como um todo. Os assinantes tentaram executar a indicação e muitos (digo: dois dos três leitores), ao recorrerem aos seus respectivos home brokers, foram impedidos de realizar a operação. Inclusive, ficaram furiosos comigo. A resposta para o impedimento: “a compra de opções é considerada uma operação de alto risco. Portanto, o senhor não consegue realizar direto no home broker. Precisará ligar na mesa de operações”. Contudo, a corretagem na mesa era tão alta que simplesmente inviabilizava a operação, posto que a indicação da put representava apenas 0,1 por cento do portfólio.
O sistema de gerenciamento de risco da corretora lia a operação como de alto risco quando, na verdade, ela estava reduzindo o risco total do investidor. Guardava correlação negativa com o restante de seu portfólio e visava proteger o assinante, enquanto o tal “suitability” impedia o sujeito de operar opções por suposto desenquadramento. O sistema que foi feito para proteger o investidor, na verdade, o impediu de realizar uma operação que diminuiria o risco de seu portfólio. Ele terminou mais exposto ao risco do que se não houvesse aquele suitability.
Aqui há uma conclusão meio óbvia: não se pode falar em aumento ou redução de risco por meio de uma operação ou de um ativo em particular; o perfil de risco precisa ser visto dentro do portfólio como um todo.
Outro exemplo: por exigência da regulação, nosso fundo brasileiro de criptomoedas favorito só permite uma alocação de 20 por cento em criptoativos. Então, como fica? O gestor aplica 80 por cento em LFT e o restante nas moedas digitais. Ou seja, se o investidor quiser ter exposição de 1 por cento do seu portfólio às criptomoedas, precisa aplicar 5 por cento da sua grana no fundo, empatando um volume excessivo de recursos ali e pagando taxa de administração sobre um excedente desnecessário. Não seria mais razoável deixar o fundo comprar 100 por cento em criptomoeda e daí o investidor poderia alocar apenas 1 por cento do seu capital ali, deixando os outros 4 por cento num fundo DI de taxa zero? De novo, enquanto tentamos proteger o investidor, condenamos o cara a uma alocação de recursos subótima.
De um lado, é fato que as plataformas precisam oferecer produtos alinhados ao perfil do investidor, com maior transparência, exposição de todos os riscos e conformidade com as características individuais do cliente.
De outro, porém, o próprio investidor pode — e diria até, precisa — mudar um pouco, se desenvolvendo, passando a entender que precisará conviver com uma volatilidade maior para ter retornos alinhados ao passado. A festa do rendimento alto sem risco e com alta liquidez acabou, já era. Então, novamente eu pergunto: se as coisas mudam, eu mudo; e você?
As corretoras precisam descobrir seu perfil e enquadrá-lo adequadamente no suitability. Mas será que você não pode também alargar um pouco a moldura e se enquadrar de maneira um pouco mais flexível? Aquilo que Sándor Ferenczi fez com a teoria psicanalítica freudiana, propondo-lhe alguma elasticidade, será que não poderia valer também para os investimentos? Não é o paciente que vai se adaptar à teoria, é a teoria que vai se adaptar ao paciente. Não podemos forçar o ser humano a caber numa determinada caixa fixa e rígida, uma Cama de Procusto determinada por algum suitability qualquer.
Milton Friedman insistia que não deveríamos perguntar aos empresários se eles, de fato, maximizam sua função lucro, aplicando-lhe um Lagrangiano qualquer e verificando se estão preservadas as condições de primeira e segunda ordem de suas derivadas parciais. Eles, obviamente, responderiam que não — cálculo integral formal e empreendedorismo não costumam ser muito próximos. Mas, intuitivamente, era isso que eles estavam fazendo.
Se Steve Jobs tivesse feito uma pesquisa de mercado perguntando se as pessoas gostariam de comprar um tablet, muito provavelmente não teria lançado o iPad.
Nem mesmo as pessoas sabem seu perfil de maneira formal e estruturada. Elas precisam jogar o jogo, permitir-se colocar o pé na água para, aí sim, descobrir se a temperatura lhes é agradável.
Como Carol Dweck identifica em “Mindset – A nova psicologia do sucesso”, mesmo as características que você considera mais enraizadas podem ser mudadas. O livro todo trata da diferença entre o mindset fixo e o mindset flexível (de crescimento). Se você se dispuser a melhorar como investidor, entender que isso depende de esforço e disciplina, você será melhor como investidor. Mesmo um ultraconservador pode ter pequenas posições arrojadas. Uma das conclusões do livro é: quem atingiu o topo e ficou lá por muito tempo foram aqueles de mindset de crescimento, aqueles que acreditavam serem mutáveis suas particularidades.
O momento exige isso. Mesmo para continuar igual (para continuar recebendo os mesmos rendimentos históricos), você vai precisar mudar. Não é uma opção. O mundo é outro. Comece a aceitar a volatilidade, mesmo que numa pequena medida. Você não precisa vir para o mundo de Marlboro. As manicures estão comprando Bolsa.