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Felipe Miranda: V de Vingança

03 mar 2020, 11:25 - atualizado em 03 mar 2020, 11:28
Você precisa se apegar aos fundamentos, aguentar o tranco e desistir de tentar adivinhar o fundo ou o pico, diz o colunista

O que aconteceria se você tivesse faltado naquela entrevista de emprego, na empresa que depois lhe foi casa por 20 anos?

E quando você conheceu a sua esposa, lembra? Se você não tivesse perdido aquele voo, muito provavelmente nunca teria encontrado a Márcia. O Gabriel está a cara dela, não é?

Imagina se você não tivesse sido tão legal quando foi com aquele senhor na academia? Será que teria vendido sua empresa para um outro grupo por preço tão alto e capaz de agregar tanto valor?

Como foi curiosa aquela viagem para Foz do Iguaçu… O começo importa muito para uma trajetória e, se não fosse por aquele caminhão de dólares comprados como hedge para se dormir tranquilo em tempos de celular Startac (just in case, sabe como é…), será que o percurso do fundo e, em alguma medida, de todo o mercado de capitais brasileiro teria se dado dessa maneira?

A vida é aleatória. Não há padrões para antecipar determinados comportamentos. Para contrariar qualquer suposição de materialismo histórico, caminhamos sobre uma linha tênue, em que toda uma trajetória acaba definida por uma determinada decisão. Depois, sob o viés da retrospectiva, parece claro que o passado só poderia ter se dado daquela forma, enquanto, na verdade, assim como qualquer outro evento do presente ou do futuro, ele foi apenas a materialização de um acontecimento diante de toda uma distribuição de probabilidades invisível, já que a História não conta tudo que poderia ter sido, mas apenas o que foi.

Distribuição essa que, conforme veio nos lembrar ontem, tem caudas gordas. Ou seja, há eventos muito distantes da média, em que um único dia, fato ou situação acaba definindo boa parte da trajetória. Poucos dias fazem a diferença e você não pode se furtar a perdê-los, sendo o mercado financeiro apenas uma metonímia da realidade.

Ontem, as Bolsas norte-americanas tiveram sua maior alta percentual diária em 13 anos (Imagem: REUTERS/Bryan R Smith)

Ontem, as Bolsas norte-americanas tiveram sua maior alta percentual diária em 13 anos. As praças financeiras pelo mundo todo apuraram ganhos notáveis. Dada a forma como se encerrou a semana passada ou mesmo o caráter errático com que se iniciaram as negociações com os futuros de Wall Street, oscilando entre uma queda de 2,4% e uma alta de 2,1%, era difícil prever o comportamento final. Sempre é difícil prever o comportamento final.

Você precisa se apegar aos fundamentos, aguentar o tranco e desistir de tentar adivinhar o fundo ou o pico. Essa é a mensagem, sob o risco de você perder dias como ontem. Quem esperou uma capa da Folha com a vacina para o coronavírus para voltar a comprar ações provavelmente perdeu a recuperação de ontem e, a julgar pelos futuros hoje, vai perder também uma boa valorização nesta terça-feira. O pior: depois que você vendeu no pânico, a coisa rasgou 10% na sua cabeça, você não pega mais. “Agora é tarde demais, ficou caro.”

Não estou com isso enveredando por um caminho retórico do tipo “a crise acabou” ou “não haverá mais volatilidade”. É muito provável que as grandes oscilações, novos sustos e surtos voltem a nos incomodar, de modo que precisamos estar vestidos de farda preta.

Mas, ao mesmo tempo, minha opinião é de que devemos estar comprados em ativos de risco brasileiros. “Quando a oportunidade aparece, você precisa ir na jugular”, ao melhor estilo Soros/Druckenmiller. Ou, como diz Howard Marks, “não é na hora boa que se formam as posições mais vencedoras, pois aí os potenciais de valorização são menores”. Tudo isso, claro, feito com o devido dimensionamento das posições, conforme seu perfil de risco, e a devida diversificação de carteira, com as respectivas proteções associadas.

Pelos últimos acontecimentos, cresce a probabilidade de uma recuperação em V, das economias e, principalmente, dos mercados. Uma espécie de vingança tácita do mercado contra os traders que achavam que poderiam dominá-lo. Três elementos fundamentais sustentam essa tese.

O primeiro é que parece aumentar a percepção de que teremos de conviver com o coronavírus. Ele já é uma realidade global. É ruim? Claro que sim. Mas estará aí para lidarmos com ele, como fazemos com vários outros problemas na vida. Mudou um pouco a interpretação sobre o aumento dos casos. Antes, qualquer notícia despertava o pânico, porque a visão era de que precisaríamos conter o vírus. Agora, começamos a entender que talvez não seja mais possível conter o vírus. E vamos lidar com isso.

O segundo se liga à possibilidade de identificação de uma vacina ou tratamento para o vírus. Ontem, foi a vez de a Pfizer dizer que teria encontrado componentes com alta probabilidade de combater o Covid-19. Se isso vier rápido, fica caracterizada a recuperação em V quase por construção, com repique vigoroso diante de restrições de consumo postergado.

O terceiro é o mais importante. Trata-se da expectativa por ação coordenada dos bancos centrais e dos tesouros nacionais pelo mundo. Na sexta-feira, Jerome Powell, do Fed, flertou com flexibilização monetária adicional. Já há quem fale em juro zero nos EUA, enquanto o prognóstico de um ciclo de corte de 100 pontos-base vai se tornando consensual. No final de semana, Kuroda, do BoJ, foi pelo mesmo caminho.

Hoje, Christine Lagarde colocou o BCE como pronto para agir para prover liquidez e garantir a solidez do sistema financeiro. A Austrália já agiu nesta terça-feira e reduziu seu juro básico em 50 pontos. O Goldman Sachs prevê cortes de juros pela maioria dos outros bancos centrais do G-10 (e alguns emergentes): um total de 1 ponto no Canadá, 0,50 ponto no Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Noruega, Índia e Coreia do Sul, além de 0,10 ponto na zona do euro e na Suíça.

Talvez o leitor mais assíduo questione a atuação dos formuladores de política econômica. Esta tem sido uma narrativa comum: diante de um choque de oferta como esse promovido pelo coronavírus, não haveria grande efeito de uma resposta dos BCs e dos tesouros nacionais, focada, quase necessariamente, em estimular a demanda.

Tenho dois contra-argumentos.

A queda dos juros tem efeito imediato sobre a atratividade relativa das ações e sobre as taxas de desconto, que implicam em valuations mais altos (Imagem: Unsplash/@ussamaazam)

As duas grandes forças principais da batizada “estagnação secular” — a tecnologia e o envelhecimento da população — não são estritamente combatidas com estímulos monetários e fiscais. O mundo fica cada vez mais tecnológico e velho, independentemente do que vierem a fazer os bancos centrais e os tesouros nacionais. Ainda assim, os estímulos fiscais e monetários têm garantido a expansão mundial (ainda que moderada) e a manutenção dos mercados em níveis elevados.

Sem querer trazer contornos técnicos demais aqui, no modelo IS-LM clássico de equilíbrio macro, se há um choque de oferta inicial (como esse do coronavírus), chegamos a um novo equilíbrio com redução do PIB.

A partir desse novo ponto de equilíbrio intermediário, se damos um choque de demanda agregada, chegamos a um novo equilíbrio final, cujo PIB é superior ao equilíbrio intermediário. Não há garantias de que o PIB final será superior ao inicial (isso depende das inclinações das curvas e do tamanho dos choques), mas ele é necessariamente superior ao intermediário. Ou seja, mediante o choque de oferta exógeno, existem, sim, impactos de uma expansão da demanda agregada.

Ao menos com este terceiro argumento o leitor deve concordar: a queda dos juros tem efeito imediato sobre a atratividade relativa das ações e sobre as taxas de desconto, que implicam valuations mais altos. Com juros nas mínimas para os Treasuries de 10 anos nos EUA, resgatamos o cenário TINA (there is no alternative), em que não há alternativa além de se comprar ações (ainda que possamos argumentar que não fazer nada e deixar o dinheiro no caixa seja uma alternativa).

Isso posto, ao menos em termos de efeito riqueza (o patrimônio da população norte-americana aumenta por conta da alta das ações, inibindo uma queda muito vigorosa do consumo), a reação dos  bancos centrais terá, sim, impacto sobre a economia.

Conforme muito bem definiu Warren Buffett, se os juros permanecerem muito baixos e os cortes de impostos se mantiverem, o desempenho das ações deve superar o dos títulos de renda fixa nos próximos anos. Esse cenário fica cada vez mais provável, e inclusive deve ser intensificado nas próximas semanas.