Felipe Miranda: Trimestre de Sete Faces
“As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul
Não houvesse tantos desejos
O bonde passa cheio de pernas
Pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
Não perguntam nada
O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode
Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco
Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração
Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo.”
Para desanuviar a terça-feira fria e cinzenta, abrimos com o “Poema de Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade, e sua rima insolúvel. Banco Pan e Cosan oferecem uma boa harmonia eufônica e, embora isso, em si, não seja uma solução, trazem bom agouro para nossa carteira — essa elevação de preços-alvo pelo Itaú logo cedo bota a gente comovido como o diabo. Agora, seriam 49% e 32% de potencial de valorização. Ok, posso dormir com isso.
Carrego um apreço pessoal particular por Drummond. Ele é de Itabira, do lado de Senhora do Porto, em Minas Gerais, cidade da minha mãe, onde passei boa parte das minhas férias de infância e adolescência. Curioso como mineiro é meio bairrista com seus artistas. A turma gosta de Skank, Jota Quest, Tianastácia, Pato Fu, Clube da Esquina… e Drummond.
Caminhávamos pelas ruas de paralelepípedo e pelos seus poemas, estimulados pela jurubeba ou pelo conhaque, bebidas de gente jovem, cujos hormônios se misturavam com sonhos bonitos e posteriormente frustrados. Entre as minhas próprias inconfidências, assim como no outro poema de Drummond, “por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas”. O Quadrilátero Ferrífero quase estava no gosto da água que nós bebíamos, cujo bitter se assemelhava ao do Campari — estudávamos Vale do Rio Doce ainda antes dos 10 anos, ainda antes de querermos estudar qualquer coisa. Só interessavam aquelas pernas pretas e brancas; amarelas não tinham muitas.
Ali, conheci o valor da amizade, título homônimo da coluna de Maria Homem na Folha. Eu ainda não o havia lido. Ela mesma me encaminhou no domingo após uma troca de mensagens nossas. Está escrito: “A vida só é digna, e mesmo possível, com elos de confiança”.
Jeff Bezos tem como uma filosofia essencial: “é melhor manter laços de confiança e, em alguns momentos, se descobrir errado do que sempre assumir que há alguém tentando lhe passar para trás”. A vida seria insuportável de outro modo. Em “Talking to Strangers”, Malcolm Gladwell elogia a tendência humana de “default to truth”, a prática de imaginar que o interlocutor está falando a verdade — a convivência seria impossível sem essa premissa.
Vez ou outra, vamos quebrar a cara. Mas triste é o enganador, cujas contas hão de se acertar com o próprio travesseiro. Nunca serão, jamais serão.
É simplesmente impossível manter-se por muito tempo no topo se não houver laços de confiança com todos os stakeholders, em especial sua equipe de liderados e seus clientes. Papai dizia sempre que confiança demora muito para conquistar, pouco para perder. Um deslize e você já era.
Procuro isso nas empresas em que invisto. Há de existir lealdade entre Jorge Paulo, Beto e Marcel. Rubens não teria saído de “apenas” um grande usineiro para acionista de referência do maior grupo de infraestrutura do país sem laços de confiança com Marcelo Martins e outros. O partnership do BTG não existiria há tanto tempo se coisas acertadas no fio do bigode não tivessem sido respeitadas com precisão e rigor — pense no que aconteceu com André Esteves e como aquilo ficou restrito a ele e só ele. Algumas coisas separam meninos de homens de verdade (e meninas de mulheres também, claro).
Tenho admiração infinita por todos aqueles que reconhecem a autorresponsabilidade. Aliás, poucos são aqueles capazes de manter uma razoável autopercepção. Como insiste Taleb, “os capitães deveriam afundar com os navios”. Vejo muito beautiful people por aí que não passam de capitães da areia, bando de crianças cinquentonas que poderiam preencher os livros de Jorge Amado. Onde é que há gente neste mundo?
Claro que ocorrem divergências e coexistem opiniões diferentes. Mas certos valores, certa perspectiva de vida são partilhadas e há de existir a confiança de um no outro. Em momentos de guerra — e não há muita diferença entre eles e o empreendedorismo no Brasil —, você simplesmente precisa confiar no seu companheiro. Um único erro individual e a equipe toda é fuzilada. Jocko Willink, militar da Marinha dos EUA que liderou a batalha de Ramadi no Iraque, insiste no ponto em seu “Extreme Ownership”.
Elos e Elon. O cara criou o PayPal, a SpaceX, a Tesla, a Boring Company, a SolarCity, a Neuralink e um monte de outras coisas. E os críticos, essas figuras deploráveis, que ficam assistindo na arquibancada àqueles que estão na arena, lembram de seus comentários sobre o bitcoin e sobre o baseado que o sujeito fumou no Twitter. As vaias costumam vir dos assentos mais baratos. Não devemos ligar para elas. Um sujeito do time B nunca vai jogar no time A.
Diz-se que o cenário de maior inflação agora e a base de comparação mais forte a partir do segundo trimestre (fim do easy comps) vão tornar a vida das empresas de tech e e-commerce mais difícil, com provável de-rating. Eu concordo com isso. A maré baixou e agora vamos ver quem está nadando pelado. Por outro lado, eu penso também que, depois do ajuste de desalavancagem e reequilíbrio do portfólio, haverá diferenciação. E quem vai liderar isso? Aqueles que tiverem times A, capazes de se adaptar e continuar entregando, aqueles sobre os quais podemos dar um voto de confiança. Na minha visão, Méliuz é uma boa pedida não porque é tech, mas porque tem um time A. Uma pena que pessoas B tenham dificuldade em identificar pessoas A — leva tempo, mas, no fim, dá certo.
Sinto saudade dos homens de verdade.
“Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói.”