Colunistas

Felipe Miranda: Segunda onda

09 jun 2021, 11:13 - atualizado em 09 jun 2021, 11:13
“Boa parte do nosso conhecimento, principalmente aquele de cunho prático, é formado pela indução, não pela dedução” diz o colunista.

O quanto disso aqui é arte e o quanto é ciência? O que importa mais: teoria ou prática? Intuição ou formalismo?

A ideia da indução é tratada com desconfiança na epistemologia desde as contribuições de David Hume. O falseacionismo popperiano foi pela mesma linha e quase sepultou a possibilidade de inferir-se o geral a partir do particular.

A investigação talebiana clássica é, em grande medida, uma revitalização do problema da indução de Hume. De quantos cisnes brancos precisamos para concluir que todos os cisnes são brancos? As teorias não podem ser aceitas, elas apenas podem ser rejeitadas. Bastou um cisne negro na Austrália para derrubar muito tempo de estudo em ornitologia sugerindo que toda a espécie era branca. 

Você nunca poderá dizer que o abominável homem das neves não existe. Não tê-lo nunca encontrado não exclui a possibilidade de esbarrar no cidadão (seria ele um cidadão?) em suas férias em Aspen. Ausência de evidência não é evidência de ausência. 

Agora, sejamos francos aqui: dá pra ter uma boa dose de confiança de que o Sol vai nascer no Leste e se pôr no Oeste amanhã. 

Boa parte do nosso conhecimento, principalmente aquele de cunho prático, é formado pela indução, não pela dedução. Se um fenômeno acontece de maneira recorrente e tem um determinado resultado, atribuímos boa probabilidade de que seja assim também no futuro.

Ainda que não seja necessariamente uma conclusão lógico-dedutiva, pode ter boa  validade. Se eu demoro cerca de 1 hora para escrever isso todos os dias, imagino que amanhã levaria mais ou menos esse tempo também. Consigo me programar para isso, ainda que incorra em atrasos de vez em quando, fruto de distrações indesejadas e não deliberadas.

É tradicionalmente o conhecimento prático que permite o reconhecimento de padrões. A arte está em, ao identificar padrões e traçar analogias entre diversas situações ou cases de investimentos, perceber o que é, de fato, similar na analogia e quais são as diferenças, se sutis ou mais marcantes.

Gosto de tentar combinar a prática à teoria. Como Taleb, acredito que a ordem das coisas importa. O conhecimento deve emanar da prática para a academia, não o contrário. A realidade se impõe sobre a teoria. Não é a realidade que haverá de se adaptar ao teórico. Há uma simbiose com hereditariedade entre as coisas, sendo a paternidade pertencente à prática.

Se a prática nos permite o reconhecimento de padrões, a teoria oferece explicações gerais para circunstâncias particulares e desenvolve nossa capacidade de abstração. Criamos modelos matemáticos e mentais para aplicar nas mais variadas situações.

Rudi Dornbusch tem um modelo interessante. Originalmente, ele foi proposto para explicar o overshooting típico do mercado de câmbio. A ideia central é que, mesmo em mercados com expectativas racionais, as moedas tradicionalmente passam por movimentos exagerados.

Na sua exposição, ele aponta a existência de dois mercados na Economia: o de bens e o de capitais. Eles possuem velocidades diferentes de ajustamento. O primeiro é mais lento, demora a reagir. O segundo é mais ágil e responde de maneira instantânea a um choque.

Então, aparece um choque negativo súbito a determinado país. O mercado de capitais reage na hora. A moeda se desvaloriza. O mercado de bens continua parado. 

Nesse primeiro momento, como só o mercado monetário reage, a resposta no câmbio é muito mais intensa, porque a absorção que viria da reação do mercado de bens ainda não aconteceu. Ou seja, no momento inicial, o câmbio vai além do que seria o equilíbrio final do processo.

Num segundo estágio, o mercado de bens vai superando sua rigidez e também se mexe, retirando a pressão excedente do lado monetário. O câmbio volta do overshooting.

O modelo de Dornbusch é, em si, bastante rico. Mas o mais interessante, pra mim, é que ele se aplica a qualquer situação em que há duas velocidades diferentes de ajustamento a choques. Você pode pensar em blue chips contra small caps — as primeiras tendem a reagir na frente; depois andam as menores.

E você pode pensar na recuperação pós-Covid. Os ajustamentos vieram primeiro na China e nos EUA, com excepcionalismos, cada um à sua maneira, no combate à doença. A China encontra mecanismos de controle social sem precedentes, além de ter observado enorme expansão monetária. Os EUA tiveram um programa de vacinação absolutamente surpreendente e acima de qualquer outro país. E teve também o Fed comprando até Marea Turbo e a administração Biden mudando bastante o regime fiscal.

Feito o ajustamento e com a vacinação bem avançada, com outros países a princípio mais rígidos superando as dificuldades iniciais, agora a Europa e o Japão encontram recuperação mais destacada. Os mercados emergentes também correm atrás do prejuízo. 

O yield do Treasury de 10 anos veio abaixo de 1,50% nesta manhã, um nível importante, tipicamente ligado ao dividend yield médio do S&P 500. Isso ajuda a reforçar uma migração de recursos à periferia e aos casos de crescimento.

O overshooting deve chegar por aqui logo, logo. E isso é totalmente racional. Depois da primeira onda de recuperação nos EUA e na China, agora está na hora da segunda onda. Essa me interessa. Você está preparado?

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