Opinião

Felipe Miranda: Rua Augusta – um lugar fecundo para rios de dinheiro

01 out 2018, 12:14 - atualizado em 01 out 2018, 12:14

Por Felipe Miranda, estrategista da Empiricus Research

“Põe só um dedinho de Martini. Carrega no conhaque. Eu não gosto muito doce.”

Ou:

“Coloca mais uma rodela de limão, parceria? Deixa só duas pedras de gelo. O ácido já corta o excesso do bitter.”

Assim abríamos os trabalhos. Começávamos no Ibotirama, na Augusta com Fernando de Albuquerque. Descíamos parando de bar em bar. O pedágio era uma maria-mole e um Campari por estação, não necessariamente nessa mesma ordem.

Com as devidas paradas no Ecléticos, no Bar d’A Lôca e no Bar do Bahia, mais baixos na altitude, mais altos no teor etílico, passávamos para outra categoria. Para manter o ritmo, tínhamos de escolher entre o Grant’s e o White Horse — ambos devidamente importados: made in Paraguai, claro. “Quero o Cavalo Branco. Me dá menos dor de cabeça. Capricha no chorinho.”

Ao ver a série Rua Augusta, lembrei de tudo isso e de quando conheci o Facundo Guerra, numa das várias idas ao Vegas. Ele já era empreendedor, reizinho da noite paulistana. Eu era apenas um flâneur, ouvindo Barão Vermelho dentro da própria cabeça em meio à música eletrônica do ambiente: “Mais uma dose, é claro que eu tô afim”.

Ao longo da vida, sempre estudei mais do que meus pares. Desde a infância, eu saía da escola, ia para o treino de futebol e depois não parava de ler. Foi assim até o colegial, depois na faculdade e no mestrado. Tinha as melhores notas do São Luís e da FGV — na USP, junto com outros dois caras, o Antônio e o Ricardo, formávamos uma espécie de equipe de revezamento para esse posto. Não me importava o rótulo. Estudava porque gostava e porque pensava que seria útil depois — que idiota!

Tendo virado mestre, queria manter-me ligado à academia. Era um jeito de continuar estudando. “Deve haver alguma verdade por aí, uma espécie de quinta essência ainda não descoberta, não é possível!”

Virei professor universitário. Dei aulas de Microeconomia, Macroeconomia, Valuation, Teoria das Decisões Financeiras, Finanças Internacionais, Opções Reais.

Sabe o que eu fiz com tudo isso que estudei? Absolutamente nada. “Os livros na estante nada dizem de importante.” Eu poderia ter jogado tudo isso fora. Os livros ainda estão lá, ocupando um dos quartos de hóspede — numa dessas sincronicidades, como se a vida enviasse sinais de sua desutilidade, derrubaram todas as prateleiras do escritório por excesso de peso. Uma antiga amiga de infância arquiteta está ajudando a arrumar.

NNada do que aprendi no banco de escola serve hoje para ganhar dinheiro no mercado ou fazer a Empiricus melhor.

O período em que mais aprendi na vida sobre investimentos e empreendedorismo foi quando perambulei como um flâneur na Augusta e quando joguei futebol no Clube do Mé, hoje Parque do Povo, aqui do lado do Itaim. Naqueles sábados de manhã, não tinha conversinha: era tiro, porrada e bomba, literalmente. Lembro de uma das discussões mais quentes em que o lateral-esquerdo do outro time correu na mochila e sacou um 38; deu dois tiros para cima e gritou: “Foi falta ou não foi falta nesta porra?!”.

A regra é clara: falta. Quem vai discutir?

O que eu quero dizer com tudo isso? Que o mundo pertence aos praticantes. Vale para qualquer coisa.

Noutro dia, conversava com uma das minhas autoras favoritas. Ela me disse que estava chateada porque seu mais novo livro passara por uma revisão e edição muito profunda, com alterações de frases e parágrafos que, em alguma medida, alteravam o significado exato da composição original.

Embora triste, ela achava aquilo razoável. Afinal, era uma grande editora, que devia saber o que estava fazendo. Apenas consenti. Tenho tentado ficar mais calado. Converso apenas comigo mesmo e, olha, mesmo assim dá umas brigas… Só fiquei pensando nas alterações que a grande revisora/editora faria nos textos do Machado de Assis (ou qualquer outro grande escritor): “Olha, Seu Machado, sabe como é, por questão de padronização de estilo e linguagem, acho melhor refazer todo esse parágrafo”.

Quantos livros a tal revisora vendeu na vida? Sempre penso no Buffett: “Wall Street é o único lugar do mundo onde as pessoas que andam de Rolls-Royce pegam conselhos com quem anda de metrô”.ha

Eu queria deixar um pouco mais clara a natureza da minha preocupação. Não é simplesmente porque a teoria sobre finanças seja inútil, no sentido de inócua, sem efeito, sem capacidade de nos dar vantagens sobre os demais. É porque ela pode ser deletéria, funcionando como um mapa errado.

Deixe-me dar um exemplo, pegando emprestadas algumas palavras de Peter Lynch, um dos maiores gestores de ações de todos os tempos:

“Alguns se atribuem o rótulo de investidores de longo prazo, mas apenas até a próxima grande queda (ou pequeno ganho), ponto no qual eles rapidamente se tornam investidores de curto prazo e vendem suas ações, com grandes perdas ou com pequenos lucros ocasionais. É muito fácil entrar em pânico nesse negócio volátil. Desde que comecei a administrar o fundo Magellan, o fundo caiu de 10 a 35 por cento durante oito episódios pessimistas e, apenas em 1987, o fundo crescera 40 por cento em agosto e caiu 11 por cento até dezembro. Terminamos o ano com um ganho de 1 por cento, preservando, dessa forma, meu histórico de nunca ter tido um ano em baixa — devo bater na madeira por isso.”

Há lições valiosas aqui, reconheço. A importância do longo prazo e o apego às próprias convicções, para não se desesperar num momento de baixa. Mas tem algo perigosíssimo também, que, aliás, é muito mais geral do que o parágrafo particular sugere a princípio.

Os investidores de ações no Brasil são, em geral, treinados nas técnicas propostas por Warren Buffett e sua trupe.

Isso me traz uma dúvida importante, por vezes negligenciada: será que esse arcabouço analítico também serve para o Brasil? Ou Buffett seria apenas uma aplicação das leis darwinistas, representando um animal mais bem adaptado ao ambiente dos mercados norte-americanos? Um gnu perfeitamente adaptado ao Serengeti africano resistiria à Amazônia tropical?

Para começar, pense no seguinte: o investimento em ações nos EUA é algo indubitavelmente bem-sucedido no longo prazo. Você pode rodar várias janelas temporais diferentes, cortar de um jeito, de outro, vai chegar mais ou menos no mesmo resultado: os índices de ações pagam alguma coisa entre 3 e 5 por cento ao ano, na média, mais do que a renda fixa no longo prazo. Em linha com a prescrição da teoria, a Bolsa paga mais do que a renda fixa — mais risco, mais retorno, tudo certo.

No Brasil, não é necessariamente assim. Os estudos sobre o tal “prêmio de risco de mercado” (o excesso de retorno da Bolsa sobre a renda fixa) são inconclusivos (eu mesmo rodei, com péssimos resultados para renda variável, infelizmente). Em vários casos, ele inclusive dá negativo. Ou seja, apesar de mais arriscada, a Bolsa não necessariamente rende mais do que a renda fixa no longo prazo.

Em termos práticos, se você comprar a média da Bolsa norte-americana e carregar isso por bastante tempo, é bastante provável que saia dali com um retorno favorável. Para o Brasil, existe zero garantia disso.

Breve parêntese sobre isso: o que é longo prazo hoje em dia? No mundo da exponencialidade, da inteligência artificial e da disrupção, as coisas mudam do conhaque para o vinho, do Vegas pro Vega Sicília, de súbito. As empresas hoje líderes de mercado são solapadas por uma inovação fora da curva. Até outro dia, BRF, Cielo e Ambev eram casos incontestáveis de qualidade, demonstrações inequívocas de “sólido crescimento dos lucros por ação no longo prazo”. Magazine Luiza ia quebrar até outro dia.

No longo prazo, nós não vamos mais morrer. Se a turma da Singularity estiver certa, interromperemos a degeneração celular e trataremos o envelhecimento como uma doença qualquer. Curando-a, podemos nos tornar imortais. É a morte da morte. Em paralelo, nosso cérebro estará plugado num exo-córtex, um supercomputador externo que nos dará uma capacidade quase infinita de processamento, armazenamento e combinação de informação. Chegaremos a um ser singular, que nem conseguimos saber hoje como será. Como antever o que é o longo prazo assim? É simplesmente uma maluquice, dado que não sabemos nem sequer o que vai acontecer em 2019? Digressão rápida adicional: fico pensando o que ocorreria se o Facebook decidisse dar crédito e criar seu próprio meio de pagamento…

O value investing clássico prescreve a realização sistemática da pergunta: “Quais serão as empresas dos próximos 30 anos?”. Nós não conseguimos enxergar um palmo à nossa frente…

Voltando ao planeta Terra, mais especificamente para as diferenças entre seus hemisférios norte e sul, como replicar as técnicas buffettianas se, por lá, a alavancagem e o uso do caixa de seguradoras/resseguradoras são ferramentas fundamentais para gerar excesso de retorno? No Brasil, todos aqueles que se alavancaram, seja como empresários ou investidores, quebraram em algum momento do tempo. Não é uma opinião, é um fato objetivo.

Qual a melhor forma de aprender a jogar futebol? Jogando futebol. Não me parece muito surpreendente.

Qual a melhor forma de aprender a investir? Investindo. Todo investidor pode entrar em qualquer mercado, sem mitos ou barreiras. Pode ser Tesouro Direto, fundos imobiliários, ações, opções, criptomoedas. Comece com pouco, sinta o terreno, coloque um dinheiro que topa perder. Sinta a dor do processo. Ela é fundamental para fazê-lo crescer.

Três recomendações essenciais na caminhada:

1. A primeira deveria ser óbvia: não se alavanque. Principalmente se você começar acertando ou estiver em boa fase, será tomado por arrogância e excesso de confiança. Na sala Taleb aqui na Empiricus, temos um quadro do mito de Anteu (sim, é real). Mantenha sempre os pés no chão. Você provavelmente deu certo. Não caia em tentação. O canto da sereia tentará atrai-lo para o termo e para a alavancagem. Resista. São caminhos para perdição. Mantenha-se fiel a seu plano de longo prazo.

2. Diversifique. Não tente ser o malandro que sabe mais do que os outros sobre uma determinada grande tacada que mudará para sempre seu destino. “Tudo que você precisa para se tornar um milionário é ter um bilhão de dólares e uma informação privilegiada.” Na balada, no Clube do Mé ou no mercado financeiro, sempre tem alguém mais esperto que você. Malandro que quer ser malandro demais se atrapalha.

3. Lembre-se sempre de que a inteligência e a autocrítica são gêmeas siamesas. Belisque-se sobre suas próprias convicções a todo momento. Tenha humildade epistemológica e no trato com os outros, mesmo quando discordarem de você — o mundo dá muitas voltas e se você distratar seu assessor de investimento hoje com alguma grosseria fora de propósito, isso pode se voltar contra si. No final do dia, todos sabem muito pouco. Eu, você, a dona Graça, o Stuhlberger, o Buffett — cada um está fazendo seu melhor, tentando viver num ambiente bem complexo.

Tento ouvir os sinais da rua, as posições de quem realmente ganha dinheiro em Bolsa. Eu penso que um portfólio formado por alguma coisa como 50 por cento em renda fixa, com boa posição ali na parte intermediária da curva nos títulos indexados, acompanhado de um bom naco de Bolsa (pode ser BOVA11 mesmo) e fundos imobiliários (BRCR11 e VISC11 entre as preferências), serve bem. Tudo claro com uma proteção em dólar. Se você vive na rua, não vai querer transitar desprotegido, não é mesmo?

Para mim, esse portfólio diversificado vale para qualquer que seja o presidente. Se você tolera a volatilidade, no final, não tem como dar muito errado, sabe? Analisando bem o perfil dos candidatos e as mais recentes manifestações de cada um, entramos em outubro com o esboço de algo curioso: numa eleição dita polarizada entre dois extremos, podemos terminar, metafórica e ideologicamente, com o mesmo ministro da Fazenda. A ideologia brasileira talvez seja, no final do dia, a mesma do capital, que é a de não ter ideologia alguma. Entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, a resposta de Macunaíma não escaparia ao: “Ai, que preguiça”.