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Felipe Miranda: Outubro ou nada

14 out 2020, 12:15 - atualizado em 14 out 2020, 12:15
“Somos tão pacificadores, tão receptivos, hospitaleiros, carinhosos, não queremos ficar mal com ninguém”, diz o colunista

“Outubro ou nada
Ou tudo ou sangue
Outubro ou tumba
Outubro ou pão
Outubro ou túnel de emoção”
– Affonso Romano de Sant’Anna

Durante algum tempo, convivi em uma casa cuja família tinha duas filhas. A mais velha era histriônica, brava, briguenta, mimada. A mais nova era calma, amorosa, pacífica. A primeira infernizava a vida da segunda, que normalmente aceitava as provocações calada. Vez ou outra, porém, a paciência chegava ao limite. A caçula retrucava e o jantar virava um inferno.

Os pais, que pareciam criar os filhos para o próprio conforto e bem-estar, interrompiam o entrevero. Como não queriam se posicionar na briga para não ficar mal com uma ou outra, sob um ar aparentemente — apenas aparentemente, insisto — democrático e justo, repreendiam as duas igualmente. O mesmo castigo para ambas.

Não importava se a segunda apenas reagia às insistentes e insuportáveis provocações da primeira, depois de semanas aguentando quieta as malcriações da irmã. É muito mais cômodo assim. Não se enfrenta de fato a situação. Toma-se de antemão que ambas estão igualmente erradas e não fica mal com ninguém, ainda que a mais jovem já pudesse ter sido canonizada por tolerar a irmã histérica por tanto tempo sem qualquer tipo de reclamação ou insurgência.

O Colégio São Luís também era meio assim. Se dois meninos — desculpe se isso lhe parece uma questão de gênero; não é, pois esse tipo de coisa vinha dos meninos mesmo — entrassem em qualquer tipo de discussão, advertência ou suspensão igual para os dois. Não importava se o diabo em forma de gente estava infernizando a vida do outro bem comportado, que apenas depois de muita provocação reagiria ao pequeno Mefistófoles.

Talvez seja uma característica brasileira, inclusive enaltecida com frequência. Somos tão pacificadores, tão receptivos, hospitaleiros, carinhosos, não queremos ficar mal com ninguém.

“Quanto tempo não te vejo. Vamos marcar um jantar?” “Claro, a gente combina.” A resposta na verdade significa, na melhor das hipóteses: “Olha, eu ate gostei de te encontrar, mas não a ponto de realmente marcar de jantar com você. Sabe, nada contra, acho você razoável. Só não neste nível de sair pra jantar e tal”. “A gente combina” significa qualquer coisa menos a real marcação deste jantar.

“Você vai no meu aniversário, né?” “Claro, vou dar uma passada.” Essa última resposta também conhecida como “não vou nem a pau”.

Evitamos qualquer tipo de conflito, mesmo que meramente retórico ou que apenas represente uma negativa de um convite, que, quero crer, seja prerrogativa de uma sociedade democrática. Eu posso não querer jantar com aquela pessoa que não vejo há séculos, com quem muito provavelmente entraremos naquele silêncio constrangedor. Quero evitar aqueles segundos em que convivo internamente com as autoindulgências: “Por favor, surja alguma coisa pertinente para eu falar com este cidadão”.

Mas não é porque você não trata um problema que ele deixa de existir. Tergiversando da verdade, ela acaba se voltando contra nós. Não repreender a filha mais velha de maneira mais rígida implica ferir a equidade vertical. Tratemos igual os iguais, mas diferente os diferentes. Há aqui um incentivo a continuar a ser uma chata e malcriada, porque a punição é a mesma da irmã adequada.

A simpatia, a cordialidade e o afeto brasileiros são lindos. Contudo, por vezes essas características escondem um outro traço da nossa personalidade, que é a recusa de se lidar com situações difíceis, de manter conversas duras, de olhar nos olhos do interlocutor e de dar-lhe uma notícia desagradável de forma honesta, sem dourar a pílula. Precisamos enfrentar os dilemas, sabendo que isso vai implicar o desgosto de determinados grupos de interesse.

A falta de capacidade em arbitrar conflitos cobra seu preço na forma de ajuste fiscal. A dificuldade de se avançar com o Renda Cidadã, por exemplo, decorre sobretudo do não reconhecimento do Executivo de que o dinheiro vai precisar sair de algum lugar, ou seja, de algum grupo hoje beneficiado. A alternativa é furar o teto de gastos. Aliás, talvez esse seja o maior mérito do teto de gastos — ao menos enquanto ele existir, formaliza-se a ideia de que agradar um novo grupo via gasto fiscal vai exigir desagradar outro.

Como muito bem lembrou Marcos Lisboa em coluna recente, “a opção do Palácio do Planalto por não enfrentar dilemas cobrou, mais uma vez, a sua fatura. A proposta para financiar a expansão do Bolsa Família resultou na piora dos preços dos ativos e das taxas de juros”.

Em boa entrevista recente ao NeoFeed, o gestor Luiz Parreiras, da Verde Asset, trouxe o assunto sob ótica parecida: “o conflito fiscal já está colocado há vários meses. O governo por ‘ene’ razões não quis tomar decisões duras. O próprio presidente tem falado que não vai mexer no seguro defesa, no abono, no reajuste das aposentadorias, no funcionalismo público, não vai mexer em nada. Então, o dinheiro tem que sair de algum lugar. Na segunda-feira, eles falam ‘então vou mexer no precatório e no Fundeb”. O mercado olha aquilo e pensa ‘o que você vai fazer é uma espécie de contabilidade criativa ou, como algumas pessoas colocaram, é a volta das pedaladas’”.

Chamo atenção para a necessidade de se enfrentarem os assuntos difíceis de frente porque não há mais tempo a perder. Havemos de ir contra a nossa própria natureza não beligerante e desenvolver a capacidade de endereçar os dilemas, sabendo que teremos choro e ranger de dentes de determinados grupos de interesse. Temos de avançar em nossa habilidade de desagradar quando necessário. O governo não é, ou não deveria ser, uma fábrica de benesses, mas justamente alguém que arbitra conflitos e faz escolhas que implicam renúncias.

Como destacou Luiz Fernando Figueiredo, da Mauá, em seu LinkedIn: voltamos a flertar com o precipício.

“Se não é da nossa natureza enfrentar conflitos de frente, também não me parece ser o caráter explosivo — não combina nem com a nossa personalidade”, comenta o colunista (Imagem: Money Times/Gustavo Kahil)

O mercado se dá conta dos riscos e cobra a conta. Se não fizermos algo rápido, possivelmente enfrentaremos restrições à rolagem de dívida no começo de 2021, dado o elevado volume de títulos vencendo, e disparada adicional do câmbio, que poderia bagunçar os balanços de empresas com dívida em dólar, destruir os lucros de importadores e chegar a patamares que necessariamente implicassem algum tipo de repasse cambial para a inflação. Isso seria terrível, pois obrigaria o Banco Central a subir a taxa de juros de forma intensa e nos jogaria muito possivelmente num processo recessivo intenso.

Felizmente, consigo enxergar uma boa notícia neste quadro, uma espécie de luz no fim do túnel. Ou, pelo menos, o túnel. Se não é da nossa natureza enfrentar conflitos de frente, também não me parece ser o caráter explosivo — não combina nem com a nossa personalidade. O herói duplamente preguiçoso não é dado a extremos. Entendo inclusive que a segunda característica sobrepuja a primeira.

Vejo alguns pequenos sinais nessa direção.

Voltamos a falar com mais vigor sobre a agenda de reformas, em particular da tributária, que, por definição, é a síntese da arbitragem de conflitos. Havemos de tirar de algum Estado ou de uma classe para dar para outros. Ainda que me pareça improvável fazê-la neste ano, os esforços nesse sentido são louváveis. Prorrogamos o prazo para 10 de dezembro e ainda estamos no jogo.

Paulo Guedes e Rodrigo Maia, depois de muito tempo, e sabe-se lá por quanto tempo, voltaram a falar a mesma língua. E essa é a língua do interesse nacional, não dos egos, que também depois de muito tempo estiveram em segundo plano com os pedidos de desculpas recíprocos.

Em paralelo, cobrávamos uma posição do presidente Jair Bolsonaro na batalha campal pública entre Rogério Marinho e Paulo Guedes. Não havia como acender uma vela para deus e outra para o diabo ao mesmo tempo, não necessariamente nessa mesma ordem. Segundo relata a imprensa, o presidente o teria feito nesse final de semana, ao dizer que não tem nenhum substituto para Paulo Guedes, mas tem uns 20 para Marinho. O recado está dado.

Para completar, pela primeira vez vi ontem uma admissão pública de formulador da política econômica sobre impactos materiais da política ambiental (ou da falta dela) sobre a atração de capital internacional. Roberto Campos Neto disse à CNN ter ouvido de investidores críticas nessa direção, o que explicaria, entre outras coisas, o fato de o Brasil ter capturado menos capital externo do que outros emergentes diante da recuperação dos mercados desde maio. Para enfrentar um problema, o primeiro passo é reconhecê-lo.

Se resolvermos enfrentar de frente os problemas, o espaço para melhora do preço dos ativos, também por conta do potencial começo da maior atração do capital internacional, seria brutal. O tempo, porém, urge. Outubro ou nada.