Felipe Miranda: os filhos precisam matar os pais
Por Felipe Miranda, CIO da Empiricus Research
Jacques Lacan, famoso psicanalista francês, dizia haver um único grupo de pacientes que não deveria receber tratamento: os parricidas. Nunca explicou muito bem a razão. Há quem atribua razões pessoais para a proposta. Talvez ele mesmo já percebesse o comportamento de aves de rapina adotado pelos seus filhos espirituais quando da proximidade de sua morte.
A associação à barbárie do parricídio não é nada nova, remetendo, claro, ao maior dos clássicos da própria psicanálise — o mito de Édipo. Evidentemente, há razões de sobra para condenar o ato. Alguém que, como eu, perdeu cedo o pai e se pergunta diariamente se não haveria algo a mais que poderia ter sido feito para mantê-lo por aqui por mais tempo ou, ao menos, para lhe conceder uma fase final mais digna encontra certo interesse e, simultaneamente, repulsa no tema. Seria a complacência no tratamento da doença uma espécie de compactuação com a morte?
Fico meio machucado só de pensar. Dói lá dentro. Mas, sabe, de alguma forma, porém, todo filho precisa matar os seus pais. Metaforicamente, claro. Morte aqui no sentido da aniquilação daquela imagem heroica concebida nos primeiros anos da infância, de superação das imposições familiares para a sua própria constituição, de acordo com valores éticos e morais individuais, sob o risco de viver às sombras da imposição de um jeito de ser e estar no mundo vindo de outro, e não do seu próprio.
Se o filho vive apenas sob as diretrizes que lhe foram impostas pela família, ele está condenado a neuroses e a uma vida de conflitos internos, sem a sua autorrealização. A brilhante psicanalista Maria Homem, com quem tive o prazer de conversar no nosso evento de 10 anos — como sou fã de carteirinha dela e do Contardo, fiquei verdadeiramente emocionado com o elogio feito à apresentação que fiz do André Esteves —, tem vídeos formidáveis em que trata a família como fetiche e potencial fonte de opressão e conflito. Vale a pena conferir.
Quando o Mioto trouxe a ideia de escrevermos um livro sobre filosofia de investimentos, eu tinha uma grande preocupação: embora a obra manifestasse a reunião de todas as ideias com as quais tive contato ao longo de minha trajetória até aqui (diga-se: uma trajetória ainda inicial, pois estou certo de estar apenas no começo — Day One, sempre!) e que me influenciaram de alguma maneira, em especial aquelas de Nassim Taleb, não poderia ser só isso.
O livro não deveria ficar restrito a uma reunião de teorias e prescrições de terceiros. Poderia, claro, ter referências e até mesmo homenagens a todos aqueles que, em alguma medida metafórica, desempenharam o papel de alma mater . Mas exigiria um passo além: alguma coisa essencialmente própria, um sopro de originalidade, algo que somente nós poderíamos trazer.
Em certo sentido, a tentativa de, primeiro, ligar Taleb a Buffett e, depois, de associá-lo aos ciclos de mercado já vai nessa direção. Mas ainda nos parecia insuficiente. Somos talebianos em essência, como vocês três estão cansados de saber. Mas não significa que sigamos à risca 100% das ideias desse autor. Pensamos com a nossa própria cabeça e com o nosso próprio método.
Ainda que sejamos influenciados fortemente pelo talebianismo (perdoe o neologismo), entendemos que ele também tem falhas — acho que o próprio Taleb concordaria que apresenta defeitos; aliás, imagino que só a turma da XP se autoavalie como sem defeitos. Por isso, dedicamos um capítulo inteiro a isso, batizado temporariamente de “O ponto que escapou a Nassim Taleb”, que, para sermos mais rigorosos, talvez precisasse aparecer no plural.
Questões de concordância de número à parte, deixe-me começar por um fato objetivo, que aconteceu de fato comigo. Senti na própria pele as mazelas dessa fragilidade talebiana — a rigor, sinto todo o dia — e o quanto é difícil transpor excelentes ideias filosóficas à prática.
Conto o caso não por curiosidade intelectual. Mas por imaginar que a ocorrência particular enseja ensinamentos gerais, por indução.
Eis o que aconteceu…
No dia 17 de maio de 2017, terminamos o pregão com puts (opções de venda) de Petrobras, Itaú e Bradesco na Carteira Empiricus. Era uma tentativa de aplicação pragmática da filosofia de sempre comprar proteções, em linha com a argumentação de Mark Spitznagel, sócio de Taleb, de que as puts fora do dinheiro são o melhor safe haven possível. Supostamente, fazia todo o sentido. Protegíamos nossa pesada alocação em Bolsa com opções de venda fora do dinheiro, que blindariam o portfólio no caso de um eventual cisne negro. Um seguro clássico contra catástrofe.
Bom, então, depois do fatídico Joesley Day, como era de se esperar, as puts tiveram alta expressiva. Se a minha pesquisa relâmpago não estiver mentindo, PETRS1 subiu 642%, ITUBS75 teve alta de 327% e BBDC19 avançou 121%. Ótimo! Veio o tal cisne negro e a Carteira Empiricus, que vinha muito bem no ano até aquele momento, não sofreu tanto quanto poderia, pois carregava justamente os tais seguros contra catástrofe.
Talvez você imagine, até aqui, que estou tentando contar um acerto, para vangloriar-me da capacidade de conseguir implementar na prática com precisão e rigor os ensinamentos de Taleb e Spitznagel. Essa, porém, passa longe de ser a verdade.
No final do dia, a posição em puts se provou um grande erro. Compramos as opções de venda para nos proteger de um eventual cisne negro negativo, veio o tal black swan e, mesmo assim, perdemos dinheiro com esse trade! Como pode?
Fomos completos imbecis? Talvez. Essa é sempre uma hipótese que não podemos descartar. Provavelmente, inclusive, é a mais provável. Mas, além da potencial imbecilidade, o que de fato aconteceu?
Depois do vazamento do áudio do Joesley, abriu-se um grande vácuo de poder. Michel Temer renunciaria ao cargo de presidente? Quem vai assumir? Rodrigo Maia? Tasso Jereissati? Nelson Jobim? Ah, não. Temer vai ficar. Hmm, mas com quais condições de governabilidade? Seu governo acabou. Não vai passar mais reforma nenhuma. Já era a Previdência. Ele virou um “pato manco” e a trajetória fiscal vai explodir. A esquerda vai voltar na próxima eleição.
O que você faria naquele momento? Por favor, não pense com a cabeça de hoje, com o “hindsight bias”, o viés de retrospectiva que nos faz traçar um passado óbvio e incontestável. Permita-se o exercício genuíno de voltar no tempo e tentar endereçar a questão. Você venderia as puts depois da bela alta, abrindo mão dos seguros mesmo sabendo do risco de o país colapsar? Ou você carregaria as puts, temeroso diante do cenário de extremamente incerteza e insegurança, ciente da possibilidade material de o mercado continuar caindo fortemente?
Nós, que nunca gostamos de apostas do tipo “all in”, decidimos manter as puts — até porque o restante da Carteira estava posicionado para mercados em alta, de modo que as opções de venda não representavam apostas direcionais, mas apenas um hedge e uma diversificação de portfólio.
Depois de uma inicial forte volatilidade, os mercados voltaram a subir, retomando a trajetória positiva consistente. As puts viraram pó, e nós perdemos dinheiro naquele trade. A tal implementação precisa e rigorosa das técnicas de Nassim Taleb e Mark Spitznagel se transformou, no final do dia, em um prejuízo para o portfólio.
Talvez você argumente que tudo bem. Como a Carteira ainda estava posicionada para um cenário de alta, perdeu-se um pouco de dinheiro no hedge e isso é natural. Talvez até dissesse que, se não fossem as puts, não teríamos tranquilidade e confiança de manter o viés comprado em ativos de risco. Ambos os pontos são razoáveis. Mas, sejamos sinceros, o trade foi perdedor, mesmo com um cisne negro no meio do caminho. Ponto final. Gastamos dinheiro à toa. Money talks, BS walks. O resto é blá-blá-blá, geração mimimi.
Com efeito, o resultado desse trade reflete a dificuldade prática da implementação da ideia de ficar comprando puts fora do dinheiro. Taleb é lindo nos livros e nas teorias, mas a vida do gestor e do trade não está na biblioteca. A performance depende de uma atitude prática, não dos bons livros que ele veio a ler — embora eu até desconfie que haja correlação entre essas coisas, elas não são a mesma coisa, lembrando a própria noção talebiana de conflation. Suspeita-se inclusive de que, como gestor e investidor, Taleb foi um grande escritor, o que ele mesmo nega, contra-argumento que lhes falta conhecimento do real resultado da Empirica, posteriormente transformada em Universa. Não importa muito nesse caso — talvez ele mesmo precisasse lembrar que os resultados das cotas estão sujeitos a serem iludidos pelo acaso.
Qual é a essência daquilo que estamos chamando do erro — ou dos erros — de Taleb e Spitznagel?
Dona Lúcia começaria a lista destacando a empáfia e a prepotência. Gente, precisa ser tão briguento e ranzinza? Mas vamos deixar isso em segundo plano.
O primeiro ponto é que basicamente não há liquidez nem pluralidade de opções no Brasil. Você está restrito a uma meia dúzia de nomes, todas restritas ao curto prazo. Se você quiser algo menos óbvio, realmente fora do dinheiro (essa é a ideia do seguro contra catástrofe, sintetiza na frase “buy the tails”, de Taleb) e minimamente longo, você vai pagar os olhos da cara. Cote em qualquer mesa de operações o preço de opções longas e fora do dinheiro. Vão cobrar-lhe o fígado ou o pâncreas em troca daquelas puts. A depender do nível de estresse do mercado, cobram-lhe ambos. Como ainda não inventaram um jeito de viver sem essas coisas, melhor evitar — embora meu próprio fígado já não esteja lá grande coisa.
A segunda questão se liga ao problema meio lógico. Comprar puts bem fora do dinheiro implica acreditar na ocorrência de algum evento raro. E há uma pequena nuance com os eventos raros: eles são raros. Você pode passar dez anos comprando puts e perdendo dinheiro. No final de uma década, você faz o trade da sua vida. Se você sobreviveu até lá, ótimo. Mas você teve liquidez, capacidade patrimonial e estômago para adotar um método que por dez anos fez você perder dinheiro? Se sim, você é um monge rico. Parabéns!
O terceiro conecta-se um pouco com o anterior. Inclusive, Daniel Kahneman tentou apresentá-lo a Taleb numa conversa entre os dois em Paris — sem sucesso. O problema da arrogância é que você não dá ouvidos a críticas pertinentes. “You didn’t get it”, costuma ser a resposta, como de fato foi no caso. Kahneman e outros pesquisadores estudaram o comportamento das pessoas e notaram como as perdas e os ganhos afetam nosso nível de tristeza e felicidade. Constataram duas coisas muito interessantes.
As perdas, na média, nos causam 2,5 vezes mais impacto do que os ganhos. A mesma dor “destrói” mais a felicidade do que o mesmo ganho gera de alegria. Além disso, ganhar uma coisa grande uma única vez gera menos felicidade do que ganhar coisas pequenas por várias vezes. Ganhar R$ 100 em dez trades deixa você mais feliz do que ganhar R$ 1.000 em um único trade.
Então, basicamente, a proposta talebiana de ficar comprando puts e perder dinheiro por meses ou nos para, talvez, lá na frente trazer um grande ganho de uma vez capaz de compensar tudo pode até tornar o sujeito rico, mas vai fazê-lo viver deprimido. É essa vida que queremos, investidor?
Por fim, resta um quarto elemento. Depois que acontece uma catástrofe, como foi o vazamento do áudio do Joesley, você executa o seguro (vende a opção)? Ou carrega mais tempo, já que as coisas podem piorar ainda mais? Quando saber a hora de realizar o seguro, sendo que, como muito bem sabe o Taleb, a hora exata de vender a opção exigiria conhecer o futuro e essa é uma tarefa impossível na prática?
Quem está certo mesmo é Riobaldo. Viver é muito perigoso. Na teoria, até o socialismo funciona.