Felipe Miranda: O que eu também não entendo
Vivendo sempre na corda bamba entre “melhor dar uma segurada” e “pô, mas a vida é uma só”.
Sexta-feira 13. Enchemos a cara ou preservamos a silhueta? Aquele medo do Jason ponderado pela esperança de uma trégua depois de muito trabalho — o que foi essa súbita e explosiva rotação setorial do começo de setembro?
Peguei a frase de abertura do Twitter — mais precisamente, do Raphael Durand Despirite. Não, eu não conheço. E também não tenho Twitter. Recebi no WhatsApp (encaminhado pela Gabi) e já acho o Raphael um gênio — me representa.
Também poderia representar os formuladores de política econômica. Tesouros e bancos centrais iriam para o all-in, para o “whatever it takes” de Mario Draghi ou “melhor dar uma segurada”? É isso que nos traz aqui. Deixe-me ser um pouco mais claro.
O mês de setembro tem sido particularmente complexo. Em seus primeiros pregões, tivemos uma verdadeira revolução nos ativos financeiros. Aquilo que vinha funcionando muito bem ao longo de 2019 (casos ligados a crescimento, compra de bonds e valorização do ouro) foi simplesmente dizimado. Investidores migraram vertiginosamente para nomes considerados de value (valor) em detrimento ao growth (crescimento) — bancos e commodities dispararam, enquanto os demais ficaram no vermelho.
Entre as várias explicações possíveis para o movimento aparecem a perspectiva de que os próximos estímulos econômicos seriam majoritariamente fiscais, o que favoreceria justamente as ações de bancos e commodities. Os juros não adentrariam tanto o terreno negativo, o que preserva os balanços das instituições financeiras, e o maior gasto público significaria, ao menos supostamente, mais crescimento à frente, mais inflação e mais juro nominal.
Outro argumento apontado para o abandono momentâneo dos casos de crescimento foi o rumor de que o valuation da WeWork sairia muito abaixo do esperado, espraiando pessimismo para todos os nomes atrelados à nova economia, à tecnologia, a valuations muito dependentes da perpetuidade e por aí vai.
Já nos últimos dias, a tal rotação setorial foi estancada e voltamos, ainda que não 100 por cento, à dinâmica mais típica de 2019. Como triggers macro para isso, podemos apontar um alívio nas preocupações com a guerra comercial e a esperança de novos estímulos monetários.
Ontem, o BCE reduziu sua taxa básica de juro em 10 pontos-base e retomou um programa de compra de títulos de 20 bilhões de euros por mês, atendendo às expectativas de maior arrojo ao resgatar o QE (quantitative easing; ou, nas palavras daquela famigerada jornalista que cobria uma fala de Luis Stuhlberger, do “kiwi” — seria a fruta uma alusão por sincronicidade ao fundo Verde?).
Foi uma postura mais dovish (mais agressiva em termos de flexibilização monetária) do que o consenso esperava, empurrando os ativos de risco para cima. Um ponto, no entanto, impediu maior otimismo: Draghi clamou por uma ação coordenada dos formuladores de política econômica mundo afora, o que alguns interpretaram como ausência de instrumental adicional relevante por parte do BCE.
Na semana que vem, há outros bancos centrais importantes se reunindo. Espera-se redução de 25 pontos na taxa básica de juro norte-americana, enquanto também já se cobram novos estímulos de Pequim. O Banco do Japão e o Banco da Inglaterra são outros a se reunirem.
Eu, sinceramente, não sei se os bancos centrais gozam de munição suficiente para impedir uma forte desaceleração da economia global. Também questiono sua capacidade de ação coordenada. Diferentemente do ocorrido em 2008-09, e até mesmo em 2015, a realidade agora é de desglobalização e descoordenação mundial.
Em paralelo, com os principais países desenvolvidos já convivendo sob altos patamares de dívida, poderíamos impetrar políticas fiscais verdadeiramente expansionistas? Dívida se paga com mais dívida? E mais: isso, mesmo se realizado, representaria de fato um empurrão à economia mundial capaz de gerar inflação e mais juro nominal?
Não tenho respostas. Acho que ninguém tem. Melhor assim. Aqueles que nutrem certezas em ambientes de complexidade, aleatoriedade e incerteza são os mais perigosos.
Agora, não saber não significa não agir. Controlar a matriz de payoff do seu portfólio pode ser muito mais simples do que entender a realidade e projetar o futuro. Ainda vejo a dinâmica mais estrutural de 2019 como predominante. A gente se permitiu aqui apenas um incremento marginal no setor financeiro — e, confessemos, fizemos isso morrendo de medo, porque sabemos das ameaças das fintechs e do quanto os valuations e os níveis de rentabilidade dos bancos brasileiros estão superiores a seus pares globais; essa jabuticaba vai durar até quando?
Fizemos isso por meio das ações do Banco do Brasil, porque identificamos, fora do tiroteio e da nebulosidade macro, também questões idiossincráticas, como um valuation atrativo, fluxo de notícias positivo e a possibilidade de, em 2020, soltar algum dividendo extraordinário depois de venda de ativos.
No mais, seguimos nos beliscando e cheios de perguntas, apesar de otimistas como um todo. O processo de migração interna em direção a ativos de risco parece inexorável, no já mais do que conhecido processo batizado de “financial deepening”. O juro baixo e estrutural está provocando uma revolução silenciosa no mercado de capitais brasileiro, que provavelmente vai durar anos.
Você viu no Valor de hoje um levantamento amplo com projeções para a Selic? Já são sete casas estimando juro básico de 4,75 por cento neste ano e, ainda mais interessante, três apontando nova redução em 2020, para 4,50 por cento? Você já imaginou o impacto disso? Falo para o seu próprio portfólio ou para o mercado como um todo. O que vai acontecer com a indústria de fundos de pensão, com os hedges, com o setor imobiliário, com o número de IPOs?
E ainda que os formuladores de política econômica não tenham tanta capacidade de enfrentar as forças da estagnação secular, o cenário de recessão global ainda oferece probabilidade inferior a 50 por cento. Com juros cada vez mais baixos lá fora e a guerra comercial esfriando por conta da imperiosa necessidade de Donald Trump se reeleger, o fluxo pode se voltar um pouco mais para os mercados emergentes. E o Brasil tende a ser um destino óbvio e expressivo, porque oferece uma das maiores acelerações de crescimento econômico do bloco.
Uma das melhores gestoras de ações do Brasil publicou brilhante carta a seus cotistas relativa ao mês de agosto colocando preciosas colocações para o prêmio de risco de mercado (grosso modo, o excesso de retorno esperado das ações sobre a renda fixa). Segundo ela, o prêmio de risco estaria em linha com a média histórica. Isso é verdade.
Talvez pudesse, no entanto, caber um brevíssimo adendo: ocorre, contudo, que os prêmios de risco em nível global estão mais comprimidos do que a média histórica; entre outras coisas, por conta de investidores sendo empurrados para mais risco num ambiente de juros negativos.
Seja como for, para mim, o desempenho dos mercados no começo de setembro mais uma vez serviu para nos mostrar uma questão elementar: ninguém sabe nada e, de repente, aparece um cisne negro sei lá onde para bagunçar tudo, virando o tabuleiro de xadrez de cabeça para baixo.
O mundo está cada vez mais complexo e difícil de ler. Diferentemente do argumento que li numa carta de outra gestora a seus cotistas, a resposta a um ambiente de mais perguntas do que certezas não é “uma gestão profissional”. Pergunte ao barbeiro se você deve fazer a barba e você pode imaginar qual será a resposta.
Diante de um ambiente de incerteza e nebulosidade, a resposta é a diversificação — a arma daqueles que não sabem o que estão fazendo. Nós — analistas, financistas, gestores, profissionais do mercado financeiro em geral — temos rigorosamente as mesmas dificuldades de projetar o futuro que os demais.
Não superestime nossa capacidade. “Ah, isso depõe contra você.” Paciência. É a mais pura verdade. Aqueles com arrogância epistemológica serão varridos do mapa, cedo ou tarde.
Já que estamos nessa de registar dúvidas em vez de respostas, já vou falar de outras três aqui de cunho micro:
1 — Talvez você me ache uma alma velha, de cabeça careca, no que eu e a realidade concordaríamos imediatamente. Mas é que às vezes não resisto a recorrer a certas heurísticas. Pode ser duro ensinar truques novos a cães velhos, mas ao menos eles também não se dão a expectativas tão ingênuas.
Você reparou o que tem de controlador vendendo sua própria ação e/ou pedindo dinheiro para o mercado para uma primária? Incorporadora, empresa de saúde, estatal. Que coisa. Enquanto isso, só vejo dono de Cosan e BTG Pactual recomprando a própria ação. De qual lado você prefere estar?
2 — Quando vamos privatizar a B3? Não, você não leu errado. Sim, eu também acho que há vantagens competitivas claras de longo prazo, do monopólio, da captura do financial deepening, do duplo beta. Admito ainda as expressivas melhoras com o novo management, que tem muita qualidade. Mas ainda está no século 20. Fora do ambiente de negociação stricto sensu , parece tocada num arcabouço analógico, fora da exponencialidade, da real digitalização, da linguagem moderna, da nuvem, da inteligência artificial, do machine learning. Ainda temos mordomo no restaurante do rooftop vestido de smoking?
Papo reto aqui: a XP, uma corretora, umbilicalmente ligada à B3, vai mesmo fazer IPO lá fora, é isso? Jura por Deus? Não se trata apenas do argumento típico das narrativas da imprensa, de que os múltiplos na Nasdaq são superiores, que o investidor estrangeiro entende melhor as techs. Bom, primeiro porque, convenhamos, a XP não é uma empresa tech, embora, claro, vá tentar se pintar assim — a noiva tem todo direito de se maquiar como quiser, inclusive de fintech.
A XP é um muito bem treinado exército de gerentes 2.0, motivados pelo brilhantismo e pela liderança de Guilherme Benchimol, com toda estruturação de governança e partnership aportada pela GA (Martin Escobari é também brilhante) e por um outro senhor à frente do conselho que tocou todo o regulatório do grupo e abriu uma série de portas por aí — não subestime o quanto uma porta aberta pode fazer por você. Mas não é só isso. Essa é outra história.
Há aqui também regras bem desatualizadas do Novo Mercado da B3 e não condizentes com o que se pratica lá fora — a Bolsa teve a oportunidade de corrigir isso e não fez. Hoje, você precisa de 30 centímetros de documentos para abrir capital aqui no Brasil; lá fora, a pilha é 20 por cento disso.
E outra questão fundamental se refere às ações superpreferenciais, com votos que representam um múltiplo das demais — isso é bem comum lá fora e garante o controle nas mãos do fundador. Já temos os casos de Azul e Gol aqui dentro; por que não levar para o Novo (velho) Mercado?
3 — Um bilhão de dólares pelo Quinto Andar! Não estou dizendo necessariamente que não vale, nem que o comprador não vá ganhar dinheiro aqui, mas, numa primeira olhada, é surpreendente, não é? Será que o Softbank, conforme aponta o investidor Bill Gurley, usa seu capital como uma arma e distorce os valuations mundo afora, complicando o jogo para todos os demais private equities?
Será que, daqui a alguns anos, vamos olhá-lo e pensar o que hoje pensamos da GP: “Lembra daquela época em que a GP fazia deal?”. Ou será que ele foi o único cara que realmente entendeu o mundo novo? O único a verdadeiramente identificar as particularidades do mundo tech, da exponencialidade, do winner takes all e por aí vai?
Mais aqui na nossa filosofia, será que não se trata apenas de uma aplicação do “tinkering” e da tentativa e erro tão defendidos por Nassim Taleb, ainda que de forma não deliberada e tácita? Se sabemos muito pouco sobre o futuro, não faz sentido mesmo espalhar nosso cartucho em 20 apostas, reconhecendo que a maior parte delas vai micar, e esperar que duas ou três se multipliquem por 20, podendo assim pagar a conta de todo mundo?
Se for o caso, se você está atrás de uma ou outra porrada de 20 vezes, vale mesmo a pena ficar brigando por um valuation 20/30 por cento mais barato?
A verdade é que eu não faço a menor ideia. Mas tenho uma curiosidade danada para saber o que vai acontecer. Enquanto esperamos, bora aproveitar a nossa sexta-feira, porque só se vive uma vez.