Felipe Miranda: nem o mundo nem a crise acabam amanhã
A julgar pelo comportamento dos mercados no momento em que escrevo estas linhas, esta quarta-feira aponta para mais um pregão negativo. Se assim será mesmo, precisaremos aguardar até as 17h. Em tempos de tamanha volatilidade, não podemos duvidar de baixa. Tenho fé de que ainda haverá um dia em que testaremos, no mesmo pregão, os limites de baixa e de alta definidos pela B3.
Tenho insistido na necessidade de cautela, serenidade e responsabilidade neste momento. Nos dias de alta, como ontem, não podemos ser tomados por esperanças ingênuas de que já superamos a crise e, necessariamente, o mercado já fez seu fundo. Ao mesmo tempo, nas quedas, como parece ser o caso de hoje, precisamos manter-nos mentalmente fortes, sem pânico ou desespero. Apolo há de vencer a luta contra Dionísio neste momento — chegará o momento da vingança dionisíaca, mas ainda não é a hora.
A ambivalência apontada por Nietzsche sobre a necessidade de convivência harmônica entre as forças apolíneas e dionisíacas me leva a uma outra, igualmente perturbadora: como transitar por um mundo que, de um lado, pode entrar numa profunda recessão (com longa estagnação posterior, permeada por deflação), sob o risco de deterioração expressiva das condições financeiras e de crédito e sob um newsflow (fluxo de notícias) absolutamente negativo (pessoas serão testadas ao limite de sua zona de desconforto, presas em casa e fora de suas rotinas, com medo de serem infectadas ou de transmitirem a doença a entes queridos mais idosos); e, de outro, oferece preços, ao menos aparentemente, atrativos?
O que fazer mediante tamanha volatilidade e incerteza? O risco do cenário negativo deve prevalecer nas decisões ou o valuation (ao menos aparentemente) atrativo?
Meu ponto é que tamanha volatilidade, tamanha incerteza e tamanha dispersão de resultados possíveis ensejam, como resposta racional, uma postura cautelosa, conservadora e protetora de patrimônio, ainda que isso possa, talvez, incorrer na possibilidade de se perder uma eventual primeira pernada da recuperação de forma potencialmente intensa.
Na verdade, esse não é o “meu ponto”. É o ponto de toda a teoria econômica e de todas as Finanças Modernas, que, em grande medida, se apoiam na visão de que os agentes são avessos ao risco. Se há muita incerteza, volatilidade e dispersão de cenários futuros possíveis, a decisão estritamente racional aponta na direção do conservadorismo, não da ganância e da multiplicação patrimonial.
Há várias formas de se ver o argumento. Duas delas me parecem bastante intuitivas. Primeiro, as coisas não são simétricas. Se somos avessos ao risco e formos convidados a um jogo cuja probabilidade de ganho é de 50% e o prejuízo potencial é de R$ 1 no caso da perda, apenas aceitaremos participar se o ganho potencial for superior a R$ 1 (essa é a definição de aversão a risco). Perder um real é mais doloroso do que deixar de ganhar um real. Todos os dias das nossas vidas deixamos de ganhar um real em vários oportunidades que sequer vimos; e está tudo bem.
Conseguimos perceber isso com alguma facilidade em decisões cotidianas mais tangíveis. Se você tem dúvidas sobre a permanência no emprego, se a volatilidade de suas vendas está muito grande e há chance de piorar à frente, dificilmente vai trocar de carro ou de apartamento. Você adota uma postura cautelosa e espera.
A teoria econômica apenas traduz e formaliza essa postura intuitiva.
Há uma corrente automatizada “buffettiana” e fundamentalista (dada sua agressividade, por vezes é difícil distingui-la do fundamentalismo religioso) defendendo que essa já seria a hora de sair comprando, dado que os preços ficaram muito baratos.
Respeito esse ponto de vista — aliás, respeito todos os pontos de vista. Para um ambiente de tanta incerteza e aleatoriedade, ou, principalmente para eles, todas as visões devem (ou ao menos deveriam) ser respeitadas. Humildade é uma virtude escassa. Contudo, entendo que uma postura mais agressiva agora ignora um dos pilares fundamentais de Warren Buffett: a margem de segurança.
Referências e inferências de valuation ficam complicadas diante de tamanha incerteza que se coloca à frente. Quanto tempo vai durar o lockdown? E as empresas aguentam? Haverá a suficiente e necessária ação coordenada de política fiscal e monetária? Atravessaremos, de forma inédita uma crise tão intensa sem nenhum cadáver? Teremos deflação no pós-crise? Sob o aumento da incerteza, não deveríamos mesmo ter um duplo efeito sobre os múltiplos? Ou seja, no clássico Preço sobre Lucro, os lucros projetados serão dramaticamente revisados para baixo e teremos de conviver com um de-rating (múltiplos mesmo menores por conta da incerteza e do maior custo do Equity)?
Em outras palavras, o que está no preço agora?
Essa é sempre uma pergunta muito difícil, porque a resposta não é observável. Há várias tentativas de estimação, claro. Minha sensação, porém, é de que uma abrupta queda dos lucros neste ano, com uma recuperação em 2021, e uma paralisação de boa parte do mundo por um ou até dois meses até já está no preço.
O mercado é bastante eficiente do ponto de vista informacional e antecipar os prováveis (e antecipáveis) eventos à frente. A nuance dessa história está, no meu entendimento, justamente no “antecipáveis”, porque ele transmite o que pode não estar no preço ainda, que é justamente o que não estamos vendo. Os “unknown unknowns” de Donald Rumsfeld.
Deixe-me tentar explicar de outra forma. Quando o mundo para por um mês, isso não significa que o PIB mundial será menor em 1/12 do que seria anteriormente. Há efeitos de segunda ordem (não observáveis) diante de tanta interconectividade, complexidade, spillover effects, relações financeiras e de crédito. Parece-me haver um risco não desprezível de que, diante de tanta volatilidade, incertezas e atrasos de pagamento de várias naturezas (fornecedores, credores, etc.), passemos por uma crise de crédito, a somar-se à já existente. E é essa crise, que ainda não estamos vendo, que não me parece estar nos preços.
Ou seja, ainda que, de fato, muitas coisas pareçam baratas, poderia, sim, haver espaço para cairmos ainda mais, uma correção tão brutal quanto outras anteriores, entre 50% e 60% do pico.
Quando alerto para essa possibilidade, vejo algumas pessoas, investidores de varejo e outros profissionais de mercado, incomodadas com o aviso. De novo, respeito o antagonismo e os contra-argumentos. Apenas pondero: seria reconfortante, inclusive para mim, escrever o que todos gostariam de ler. Mas isso não seria certo. Tomando meu trabalho como minha real vocação, devo escrever (ou falar) o que, no meu entendimento, as pessoas precisam ler (ou ouvir).
Trazer opiniões que apenas validam pré-conceitos e interpretações já existentes dentro do interlocutor poderia trazer alívio num primeiro momento, mas também poderia trazer sérios prejuízos à frente. Em rota de colisão com o viés de confirmação, todos nós deveríamos valorizar opiniões e perspectivas contrárias às nossas. Visões de terceiros alinhadas às nossas próprias anteriormente já carregadas não vão nos levar adiante. Para caminharmos na evolução dialética do curso da História, precisamos necessariamente de uma antítese à nossa tese; daí vai emergir uma síntese. Se só há tese, não sintetizamos nada. Ficamos parados no estágio inicial.
Esclarecimento importante: não estou, em nenhum momento, afirmando que isso vai acontecer. Deixo a previsão do futuro para os charlatões e para os convictos que sabem tudo. Nossa única vantagem aqui é que sabemos que não sabemos. E, justamente por isso, precisamos prepará-lo para tudo. Não estou apostando na queda da Bolsa, tampouco ignorando que podemos começar a subir a partir de agora. O ponto é simplesmente que as coisas podem (por favor, desculpe ser repetitivo, mas insisto: podem) ficar piores.
O cenário de uma crise mais grave, envolvendo recessão e deflação, com chances de passarmos por deterioração mais proeminente das condições financeiras, ainda não me parece no preço. Esse é o ponto.
Relatório recente da Goldman Sachs ilustra muito bem o argumento. Eu quero pegar duas questões que me parecem centrais. Em termos de valuation, “dê um choque de 50% nos lucros neste ano e suponha uma recuperação à frente. Os modelos sugerem o S&P 500 a 2 mil pontos”.
Resumidamente, portanto, ainda teríamos algo como 20% de downside potencial para as Bolsas americanas. Se preservarmos o padrão histórico, isso ainda indicaria um espaço de até 30% de queda para a Bolsa brasileira. De novo, esclareço: não estou afirmando que isso vai acontecer. Apenas temos de ter essa possibilidade contemplada, sob o risco de nos machucarmos gravemente.
Segundo a Goldman, ainda não atingimos o estresse máximo em termos de sentimento do investidor, conforme denota o gráfico abaixo:
Outro ponto importante se refere ao quanto os valuations ainda não incorporam uma queda tão expressiva dos lucros, mas apenas uma contração modesta, algo em torno de 9% para o caso da Europa. O gráfico abaixo mostra isso:
Em resumo, ainda que algumas ações já estejam, de fato, a preços interessantes e que possamos começar a recuperar a qualquer momento, a situação ainda enseja muito cuidado. Se temos, sim, espaço para a melhora, também temos ainda chances de mais coisa ruim pela frente — e não é pouco. Diante de tanta incerteza e volatilidade, o momento é de cautela e proteção patrimonial.
No meu próximo Day One, vou tentar trazer referências de quando pode ser o momento de se virar a mão e ir para uma postura de multiplicação de capital. Há muita coisa ainda por fazer em 2020. Se estivermos certos no nosso plano, este ainda pode ser um grande ano. Por enquanto, muita responsabilidade e diligência.