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Felipe Miranda: Crise de identidade aos 200 anos?

27 dez 2021, 15:16 - atualizado em 27 dez 2021, 15:16

“Como uma mensagem de fim de ano, gostaria de sugerir que tentássemos evitar o viés de representatividade. Não é porque tivemos um período difícil de determinada classe de ativos que o momento subsequente também será assim. Ao contrário, a economia é cíclica, sendo sempre melhor comprar barato (quando caiu).”

“Sunrise doesn’t last all morning

A cloudburst doesn’t last all day

Seems my love is up

And has left you with no warning

But it’s not always going to be this grey

All things must pass

All things must pass away”

George Harrison — “All Things Must Pass”

Último Day One de 2021. O ano foi difícil. 

Perdas generalizadas para a Bolsa, numa intensidade pouco capturada pelo Ibovespa, tão dependente de bancos e commodities. Small caps foram dizimadas, ações de qualidade, que poderiam ser um refúgio para qualquer investidor, trouxeram muitas surpresas negativas. WEG, Magazine Luiza, Natura, Rede D’Or, B3… quem diria? 

Fundos de ações e multimercados sofrendo resgates sucessivos, num ciclo perverso. A cota cai, o investidor se incomoda e saca. O gestor é obrigado a vender para honrar resgates. A cota cai mais. Voltamos ao começo. Se fôssemos argumentar, talvez essa fosse a hora de o cotista aplicar mais, quando as coisas caíram e, portanto, estão mais baratas. Quem sou eu para mudar a natureza humana? Se até o cotista médio do Magellan perdeu dinheiro, por que aqui haveria de ser diferente? “Veja como a cota está subindo. Esse Peter Lynch é um gênio. Vou aplicar depois da subida (quando as coisas estão caras).” “Opa, agora as cotas estão caindo. Melhor sacar logo. Esse Peter Lynch é um idiota.” Compramos caro, vendemos barato, subvertendo a lógica elementar das finanças.

Fundos imobiliários também no vermelho. E o suposto refúgio da renda fixa? Prejuízo também — em termos nominais, claro, você até ganhou dinheiro se escondeu-se num pós-fixado, mas perdeu da inflação; todas as demais categorias castigaram o investidor também nominalmente.

Há várias possíveis explicações para a dificuldade de 2022. Algumas delas verdadeiras, outras meras falácias da narrativa, atribuição de causalidade onde há, no máximo, correlação. Elas são conhecidas dos três leitores desta newsletter ou mesmo do interessado nos jornais.

Ofereço hoje uma perspectiva diferente. O ano foi particularmente desafiador porque não teve identidade. E a falta de identidade, a incapacidade de reconhecer em si características que o distinguem do outro, catalisa neuroses agudas. Se não há identificação com uma autoimagem clara, questiona-se absolutamente tudo. Pode ser louvável sob a ótica da descoberta cética e até representar um choque antifrágil para melhora posterior. Mas a completa ausência de identidade implica perda de referência, uma forma extrema de incerteza e impossibilidade de perceber caminhos. Se não sei quem sou eu, como escolher? Para quem não sabe aonde está indo, qualquer caminho serve. 

Em investimentos, o excesso de incertezas tem como consequência prática o aumento dos prêmios de risco. Ou seja, na dúvida, o investidor exige mais excesso de retorno para comprar um determinado ativo, o que só pode acontecer se ele ficar mais barato.

Em grande medida, este ano representou a extensão das mazelas de 2020, com a crise da Covid-19 penetrando a nova folha do calendário. Primeiramente, com suas restrições à mobilidade e, portanto, à atividade econômica. Depois, com a necessidade de dar uma trajetória crível à situação fiscal, como reação à grande expansão de gastos de 2020 — mesmo Keynes defendia gastos públicos para reagir à falta de demanda privada, que, num segundo momento, seriam compensados por um período de poupança pública. Não há milagre da multiplicação do dinheiro da viúva na Teoria Geral. Mas parece que a turma só leu a primeira parte.

Ao mesmo tempo, 2021 também antecipou o debate eleitoral de 2022, prematuramente. Fomos incapazes de avançar com reformas, estouramos o teto de gastos e adotamos uma postura populista porque já se mira o pleito futuro. E como todo mundo tem medo do extremismo, de um lado e de outro, lá vamos nós viver neste ano o que deveria estar reservado para 2022. Paramos o país com medo do que pode ser a eleição. O mais curioso desta história toda: se você conversar com grandes investidores, locais ou internacionais, perceberá raros casos de real preocupação com o novo governo. A maior parte das respostas vai apontar descrença em grandes rupturas e até mesmo alguma previsibilidade, por mais incrível que pareça. A moda do discurso: “Já conhecemos os atores em jogo. Não há novidade. Esta eleição será decidida ao centro e será eleito um governo assim. É inexorável um ajuste fiscal em 2023, independentemente de quem for o novo presidente”. Mas, na dúvida, cobra-se prêmio de risco. E o kit Brasil derrete.

Esprememos tanto o ano de 2021 entre 2020 e 2022 a ponto de condensar a matéria forçando a sua expansão. Foram 12 meses que pareceram uma década.

Se a hipótese é válida, talvez ela venha, implicitamente, carregada de uma mensagem de esperança. O ano de 2022 traz um evento real suficientemente importante para chamar de seu. Além da concretude oferecida pelas eleições, o ano marca também o aniversário de 200 anos da independência brasileira e de 100 anos da Semana de Arte Moderna, elementos marcantes da fundação e da identidade nacional. O que faltou para 2021 sobra em 2022.

Talvez seja o momento de lembrar, remetendo à independência, a tendência a “acordos dentro de casa (ou da corte)”, em detrimento às verdadeiras revoluções e às rupturas; o liberalismo avançado da primeira Constituição formalmente brasileira de 1824; um certo conservadorismo, tal como aquele preconizado por Burke ao defender a revolução norte-americana, de que, certas vezes, é preciso avançar para preservar as instituições e evitar o pior. Ao mesmo tempo em que nos recordamos da antropofagia que é tão marca da identidade nacional (ou da falta dela), o hábito de engolir tudo o que vem de fora e digerir ao nosso modo. A economia global, embora desacelere, cresce em bom ritmo, acima do potencial, e isso é bom para as commodities. Será que finalmente vamos digerir o bull market internacional e apresentá-lo ao tropicalismo?

Como uma mensagem de fim de ano, gostaria de sugerir que tentássemos evitar o viés de representatividade. Não é porque tivemos um período difícil de determinada classe de ativos que o momento subsequente também será assim. Ao contrário, a economia é cíclica, sendo sempre melhor comprar barato (quando caiu). 

Que em 2022 possamos encarar a vida com uma perspectiva aberta, sem que percamos a responsabilidade. Uma defesa um pouco além da apatia dos estoicos.  Um amor fati preenchido de espírito de aventura perante a vida. A preservação de alguma esperança, sem que isso se confunda com falsas ilusões ou expectativas ingênuas. 

O que seria a vida se não a encarássemos em toda sua plenitude e suas possibilidades? Não seria isso, afinal, a transposição para a diversificação e a convexidade?

O Brasil, como nação, é assim há 200 anos. E parece mais provável que continue assim em 2022, com seus vícios e virtudes.