Felipe Miranda: Cassino – o dilema da máfia
Como costuma acontecer nos filmes de Martin Scorsese, há várias frases geniais em “Cassino”, proferidas por Sam Rothstein (Robert De Niro). Algumas delas:
“For guys like me, Las Vegas washes away your sins. It’s like a morality car wash.”
“At night, you couldn’t see the desert that surrounds Las Vegas. But it’s in the desert where lots of the town’s problems are solved.”
Tenho a minha favorita:
“I’m not only legitimate but running a Casino, and that’s like selling people dreams for cash.”
Eis o dilema típico da máfia, uma espécie de paradoxo: conforme ela cresce e ganha relevância, quer abandonar as atividades que a fizeram ser quem ela é. Para isso, ela precisa se institucionalizar, legitimar-se em operações legalizadas e tradicionais.
Ao fazer isso, começa a enfrentar contradições. Resumidamente, como um fora da lei pode voltar as costas para o próprio passado e passar a atuar dentro das leis? Em grande medida, esse é um dos elementos centrais de obras de ficção envolvendo a máfia, como em “O Poderoso Chefão”, “O Ano Mais Violento”, “Peaky Blinders” e o próprio “Cassino”.
Obras de ficção, fique claro. Qualquer relação com cleptocracias latino-americanas é mera coincidências — e lá se vai a diretoria de Ações Educacionais do FNDE.
Stanley Druckenmiller diz nunca ter visto uma combinação tão ruim de risco e retorno para a Bolsa americana. Warren Buffett não diz muita coisa, mas faz. Desde que começou a crise, não há notícia de que tenha comprado algo relevante, embora tenha se desfeito, na íntegra, de suas ações de aéreas e de 84% de sua posição em Goldman Sachs, além de ter vendido também um pedaço da exposição em JP Morgan, no primeiro trimestre.
Calma, o salto na narrativa é apenas aparentemente desconexo. Os dois assuntos — o ceticismo dos megainvestidores e as frases de Sam Rothstein — estão relacionados.
Várias vezes me deparei com a pergunta: “A Bolsa é um cassino?”. Sempre respondi, para mim mesmo silenciosamente ou para terceiros, com uma enfática negativa. Como muito bem sintetizou certa vez Robert Rubin,
“investimentos são, na verdade, o exato oposto de um cassino. Quando bem feitos, representam o uso das probabilidades a seu favor; enquanto, no cassino, quem vai contar com as chances a seu favor é a banca, apenas ela”. Mais uma vez resgatando Sam Rothstein: “That’s the truth about Las Vegas. We’re the only winners. The players don’t stand a chance”.
A verdade, contudo, é que a Bolsa pode ser um cassino, se você assim quiser e permitir. Enquanto um processo diligente e fundamentado faz com que, ao longo do tempo, as probabilidades estejam a seu favor, análises rápidas e superficiais, juntas a processos malfeitos e horizonte de curtíssimo prazo, implicam apenas um jogo de probabilidade de 50/50, em que, a cada rodada, você deixa algo para a banca — B3 e corretoras — via custos de transação.
Ontem, a Azul (AZUL4) não se tornou uma empresa 29,87% superior àquela mesma Azul de sexta-feira. A CVC (CVCB3) também não melhorou 19,24% — apesar da presença do Leonel, quando tudo isso passar e varrermos os problemas ainda existentes no balanço, poder sugerir dias melhores lá no Longo Prazo (deliberadamente com maiúsculas; precisei escrever para evitar a correção da turma da revisão).
Para citar uma ação de que eu mesmo gosto de modo a não parecer algo enviesado, Braskem (BRKM5)também não mereceu 14,97% de alta ontem. Na outra ponta, frigoríficos e empresas de papel & celulose não tiveram fluxos de caixa de hoje até o infinito aproximadamente 10% diminuídos de sexta para cá.
O curto prazo é a vitória da aleatoriedade, dos elementos técnicos (de disputas entre comprados e vendidos no vencimento de opções, de zeragens compulsórias e do short squeeze) e do domínio do fluxo imediato frente aos fundamentos. Nele, não há probabilidades a seu favor. Há chutes, apostas na sorte e torcida. Toda a chance que você poderia ter a seu favor é transferida para a banca. Bem-vindo ao cassino.
Também na Bolsa existem situações em que o cassino fica um pouco mais institucionalizado. Ontem mesmo, logo depois do anúncio de notícias alvissareiras sobre os sucessos em sua fase 1 de testes para a vacina contra o coronavírus, a Moderna fez uma chamada de capital.
Enquanto isso, investigação no Twitter apontava seu CEO, Stéphane Bancel, de estar vendendo pesadamente as ações, enquanto uma misteriosa companhia de nome Flagship Pioneer, maior acionista da Moderna, também estaria se desfazendo dos papéis.
Logo vieram as acusações de clássico “pump and dump”, em uma faceta institucionalizada e legitimada — o gestor Richard Clark prontamente comentou sobre os compradores dessa oferta de ações: “sou lembrado do clichê: se você está sentado numa mesa de pôquer e ainda não descobriu quem é o pato, o pato é você”.
Há uma certa confusão sobre o papel do analista ou do gestor. Nós não estamos aqui para falar quais ações e títulos mais vão subir. Até porque nós não sabemos quais ações e títulos mais vão subir. Ninguém sabe, pois é impossível saber — embora, claro, existam aqueles que acham que sabem, justamente os mais perigosos.
Atalho rápido para identificar um analista e gestor perigoso: procure por arrogância e muita convicção. Se ele não duvida de si e das próprias crenças, ele não se belisca nem testa apropriadamente suas convicções. Logo ele vai errar e, como é muito convicto e prepotente, vai estar com posições grandes. O prejuízo será brutal. Trajetórias consistentes de longo prazo são necessariamente acompanhadas de ceticismo e humildade epistemológica.
A tarefa do bom analista ou gestor é perseguir as melhores combinações de risco e retorno, o que é bem diferente de adivinhar ex-ante as maiores altas do próximo mês ou ano. Adivinhações são diferentes de análises. Se eu tivesse lhe proposto, há dez anos, comprar 100% do seu patrimônio em bitcoins e você seguisse a sugestão, hoje estaria multimilionário. A questão é: teria sido uma boa escolha?
Como disse Fabio Okumura, da Gauss, ao Seu Dinheiro: “A gente não precisa se gabar de ganhar o dinheiro mais difícil do mundo, nosso trabalho é obter o maior retorno possível com menor risco.
Qualquer trajetória precisa considerar risco e retorno. Não só retorno. Um exemplo muito simples: se você atinge o mesmo resultado com uma carteira concentrada em reais frente a outra com um pouco de dólares, você fez um melhor trabalho no segundo caso, porque teve a mesma performance com muito menos risco”.
Quando Stanley Druckenmiller diz nunca ter visto uma combinação tão ruim de risco e retorno para a Bolsa americana e Warren Buffett só faz vender mesmo na crise, não está se afirmando necessariamente que Wall Street vai cair. Estamos apenas enxergando uma distribuição de probabilidades de eventos futuros que enseja muitos riscos perante os retornos potenciais associados. Isso é usar as probabilidades a seu favor. O resto é cassino.
Você pode acessar a opinião do colunista sobre proteção de patrimônio nesse momento neste vídeo.