Felipe Miranda: Carta ao Pai
Querido pai,
Esta correspondência vem em circunstâncias diferentes de sua homônima mais famosa. Curioso como eu mesmo já tenha me correspondido com você me apropriando do original de Kafka. Eu jamais poderia me aproximar da precisão dele para descrever o que eu também senti durante muito tempo por você. Quase posso recitar aquele primeiro parágrafo de cor:
“Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.”
Não sei se você se lembra, nem se essas palavras chegaram até você. Sabe como é: com você aí no outro plano, a gente nunca sabe para qual endereço enviar. Não sei se a Amazon entrega até aí. Mas eu as usei no primeiro livro que escrevi, chamado “Contra o Financismo”, junto com o Rodolfo.
É curioso ver como as coisas mudaram desde então. A verdade é que, desde que você morreu, nossa relação se transformou muito, pai. Ok, você tem razão. Nem tanto. Eu continuo um idealista incontornável e teimoso, você continua a me visitar quase todas as noites com as cobranças de sempre. Mas sublimamos várias coisas.
Pedro Malan diria que, no Brasil, até o passado é incerto. Eu acho que ele é incerto em qualquer lugar, em especial no nosso ecossistema psíquico. Podemos reconstruir a história dentro da gente, reinterpretá-la. E é por isso que decidi te escrever, por ocasião do seu aniversário. Sei que estamos uns poucos dias atrasados. Eu queria ter escrito ontem, mas a pequena Julia pediu passagem — a história dela é tão bonita, pai. Acho que você ia adorar. Espero que você entenda. Não? Imaginei. O rigor e a disciplina de sempre com horário.
A verdade, pai, é que senti necessidade de expor-lhe como hoje as coisas estão diferentes. E digo as coisas dentro de mim. Não tenho mais medo de você. Ao contrário, posso entendê-lo muito bem e hoje vejo aquela insegurança toda como imaturidade, dúvida se eu poderia em algum dia chegar perto da sua grandeza, se conseguiria realizar as coisas que você infelizmente acabou não alcançando e que eu prometi que entregaria para você. Não deu tempo de fazê-lo em vida. A História impõe as suas contingências e restrições.
Desde que você saiu do Banco Safra e se tornou sócio da corretora Bônus, antes daquele escândalo todo do Mensalão (sim, você já tinha saído…), eu sabia que o sonho frustrado de ter uma corretora própria com características diferentes do que se vê por aí o incomodava muito. As decepções, emocionais e financeiras, marcam não só o corpo, mas também a alma, principalmente a alma. Espero que, a esta altura, dez anos depois, já tenha dado tempo de curar o espírito — deve ter um médico disso por aí, não tem? Pois o meu está curado, pai.
Aquela promessa de entregar-lhe aquilo que você mesmo não conseguiu fazer por conta da maré das circunstâncias começa a tomar forma. E arrisco dizer que você ficaria orgulhoso das coisas que estamos construindo. “O diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro — dá gosto! A força dele, quando quer — Moço! — me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho — assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.”
Sei que demorou mais tempo do que nós dois gostaríamos. Deus, naquilo que você sabe que eu entendo por isso, aquele Deus de Spinoza, mas que poderia ser de Martinho da Vila, é devagar, devagarinho.
Se na ocasião do meu primeiro livro eu o escrevia para manifestar meu medo de você, quase num próximo terapêutico, a cura pela escrita; agora, quando meu novo livro aparece entre os mais vendidos da semana, posso dizer-lhe que sublimamos aquele problema. Pai, você ia adorar o prefácio do Esteves — nós dois sabemos o que o Pactual significava para você. Lá em casa, aqueles cariocas e o Tom Freitas Valle eram mais famosos do que os jogadores de futebol.
O que eu talvez nunca tenha conseguido lhe dizer é que tinha e tenho orgulho de você, pai. E se sempre alimentei tanto medo é por me sentir incapaz de agradá-lo, de ser minimamente comparável a você. Hoje, sem nenhuma arrogância, com a devida humildade de saber que ainda temos muito a melhorar e muito por fazer, posso lhe dizer que a Empiricus, aquela empresa que você achava que não ia a lugar algum (acho que você nunca me perdoou por eu ter saído do Deutsche Bank, né? Tudo bem, eu já superei e não guardo mágoas), se tornou referência mundial em dois nichos de mercado: research (pesquisa independente em investimentos) e marketing digital.
Sim, pai, mundial mesmo. De novo usando Kafka, eu até me inclino a certos exageros, ao melhor estilo “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”, mas, desta vez, não é o caso. Não há neste planeta uma empresa de research que tenha a relevância da Empiricus para seu respectivo mercado — pai, são 375 mil famílias que leem essas coisas que a gente escreve. Se forem, na média, três pessoas por família, a influência transcende um milhão de pessoas. É um terço do mercado, pai.
No marketing digital, a turma aqui foi chamada para explicar ao Google como usar tão bem o YouTube. É meio bizarro pensar nisso, né? É a versão empreendedora do quebrando a banca. Um dos responsáveis por isso é o André, pai. Você já pode perdoá-lo por ele ter comido todas as caixas de Bis lá de casa. Acho que hoje em dia ele pode comprar a produção anual da Lacta pra você.
Agora, pai, o caminho é em direção à plataforma de investimentos que você também tanto sonhou. A gente persegue uma corretora alinhada ao cliente, sem conflitos de interesse, orientada pelo research (e não um research qualquer!), com boa experiência do usuário e custos justos para o investidor. Dizem que vamos disruptar o que há por aí; eu não sei, mas também não duvido.
Eu entendo que você tenha sido agente autônomo. Respeito isso. Mas você também entende, né? Nós dois sabemos e levaremos algumas coisas para o túmulo. Na nossa plataforma de investimentos, não vai ter isso aí, não.
Se da outra vez eu escrevi para expressar meu medo e tentar exorcizá-lo, agora, mais maduro e menos petulante (me desculpe por isso, pai), queria agradecê-lo por me ensinar tantas coisas importantes, inclusive para sobreviver nesta selva do mercado financeiro.
Você já falava como amigos vêm e vão nesse ambiente, né? Curiosa volatilidade das amizades. Com raras exceções, a proximidade e a simpatia das pessoas também são marcadas a mercado. Você chegaria a rir de como aquela turma que virou as costas na pior hora hoje tenta se aproximar. Não se preocupe, pai. Eu visto minha máscara de Pluto e finjo que não lembro. Sou sujeito educado. A mamãe me mataria em contrário. Ela continua a mesma.
Obrigado também por me mostrar como a alavancagem e o day trading podem ser perigosos. Aprendemos “the hard way”, mas paciência. Acho que não tem outro caminho. Tem uma turma nova que poderia tanto evitar tropeços se conhecesse a sua história, pai. Mas não adianta. Não somos nós dois que conseguiremos retirar o excesso de confiança das pessoas, né? Nem Daniel Kahneman conseguiu…
E como sua experiência denotou a dificuldade em ganhar dinheiro com telecom no Brasil, hein, pai? Como perdemos grana com esse setor, Jesus. Olha só. Ontem, eu postei uma foto elogiosa às ações da Oi no Instagram (é uma ferramenta nova que inventaram aí, não se preocupe, anda bem superestimada hoje em dia). Uma pessoa respondeu, depois de capturar uma boa alta com os papéis: “Deus te abençoe”. Veja, eu ainda estou aqui tentando reconciliar as ações da Oi com o divino, confesso. Essa bicha é mais arisca que o diabo. Nós dois sempre gostamos de uma travessura, né, pai?
Ah, queria aproveitar e cobrar aquela aposta. Os chineses ainda não compraram a Tec Toy, viu? Aliás, pai, como você adorava essas especuletas, hein? Outra lição prática foi ter visto cedo como as narrativas dos fóruns de ações são mentirosas e como “algum chinês vai comprar isso” normalmente não passa de uma invenção de alguém que não conhece nada do respectivo case.
Também foi importante perceber que “calma, isso volta” nem sempre corresponde à verdade. Melhor vender as coisas que caem do que as coisas que sobem, embora nossa tendência humana insista no contrário, em carregar os prejuízos para evitar a dor de encarar o próprio erro.
Melhor seria se não tivéssemos acreditado em certas promessas, né, pai? Sejam as de amigos ou aquelas que nós mesmos nos contamos. Por que concentrar tanto em apostas que nós sabíamos não passar de apostas? Você amava um jogo, eu sei disso. Apostava até resultado da Lusa. Jogo do bicho, aos sábados de manhã, ao lado do restaurante do Jorjão, aquele sujeito de bigode com o caderninho na mão; xadrez, dama, um baralhinho. Não perdia um. Mas a Bolsa é outra história. Aliás, uma história que deveria ser o oposto do cassino, em que usamos a probabilidade a nosso favor, em vez de sermos vítimas dela, como em Las Vegas.
“Fundo do poço tem porão”; “nunca pegue uma faca caindo”; “você é tão bom quanto seu último trade”; “contra fluxo não há fundamento”. Você adorava esses clichês. Eu não gostava tanto, mas suspeito que se tornaram clichês por serem reais.
O que eu mais gostaria de te dizer, pai, é que hoje nossa família tem muito mais do que jamais pudemos imaginar. Mas o mais legal é que está só começando. Para você, que não falava inglês, esta carta em formato de Day One é só o “dia um” de uma nova relação que te proponho hoje. Ela está baseada no meu agradecimento, na minha gratidão — e como anda escassa essa virtude…
Feliz aniversário, um pouquinho atrasado. A indústria de investimento 3.0 é meu presente pra você. Nós podemos curtir juntos numa boa festa, com todos os investidores de varejo, do jeito que você gostava.