Felipe Miranda: boas notícias são… boas notícias
Esta é uma história absolutamente verdadeira. Lá se vão uns belos 12 anos — embora pareçam uns 50. Reproduzo os diálogos entre aspas, sabendo que talvez não estejam aqui ipsis verbis. Se for o caso, é por mera incapacidade da memória, não pela decisão deliberada de alterar os fatos ou dar contornos hiperbólicos às conversas. Seja como for, o espírito está preservado na íntegra.
Eu trabalhava numa gestora de recursos focada em ações, lá pelos idos de 2008, mazelas do subprime. Valorizo a época, importante para criar casca, calejar as mãos e deixar as costas marcadas de tanto apanhar.
As cicatrizes são úteis e conferem vantagens frente às peles de bunda de neném dos filhos do bull market iniciado em janeiro de 2016. Não que aquela fosse a minha primeira crise. Para quem começou com ações no final dos anos 1990, já colecionava um bom álbum de figurinhas: Malásia/Tailândia (1997), LTCM/Rússia (98/99), Nasdaq (2000/01), Argentina (2001), apagão (2001), eleição do Lula (2002)… Mas a quebra da Lehman foi a quebra da Lehman.
A ação favorita do gestor à época era uma small cap de bens de capital altamente alavancada. Some-se a isso que outro grande acionista da respectiva empresa à época era a GWI. Desnecessário dizer o que lhe aconteceu depois daquele 15 de setembro de 2008. Combinação altamente explosiva, claro.
A despeito de vários alertas do time de análise à época, o gestor era, por assim dizer, se me permite o eufemismo, um sujeito de bastante convicção, sendo difícil demovê-lo daquela ideia — ou de qualquer outra. Mas como manda quem pode, obedece quem tem juízo — e eu sempre tive por hábito respeitar hierarquias e processos —, lá estávamos nós com aquele mico na mão, embora, claro, internamente fugíssemos desse termo como o diabo foge da cruz.
Alguns meses e muitos resgates depois, nosso gestor teve uma brilhante ideia. Ele tentaria vender a posição na respectiva pequena notável para outro grande gestor (muito maior e relevante), também acionista do caso. “Vou oferecer-lhe meu lote. Mas eu conheço o sujeito e sua sagacidade. Não posso simplesmente chegar lá e dizer que quero vender. Ele vai perceber. Então, já sei: vou dizer que quero comprar o lote dele, falando de um alto potencial a curto prazo. Ele vai achar, portanto, que a ação vai subir e querer comprar. Daí eu vendo pra ele. Bingo!”
Achei bizarro, evidentemente. Mas, de novo: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Até tentei argumentar que talvez não fosse propriamente uma estratégia convincente. Fui amassado no contra-argumento. Lá fomos nós a pé caminhar pelo Itaim.
Chegamos, como sempre, pontualmente à reunião. Esperamos cerca de 10 minutos até que entra o potencial comprador do nosso lote na sala. Para meu constrangimento, entrou o grande gestor, acompanhado de um exército. Vieram ele, dois analistas e sua advogada — “meu Deus, pra que tudo isso? A gente só vai conversar”, desabafei comigo mesmo, sob leve desespero.
Apresentações feitas e formalidades cumpridas, lá foi meu chefe apresentar seu plano infalível para o ser mitológico do outro lado da mesa, que fingia ouvir interessada e atentamente. Ele era rápido, articulado e inteligente, de modo que conseguiu condensar aquilo em menos de meio minuto.
Depois de um ensurdecedor silêncio de cerca de 10 segundos, que me pareceram umas oito horas, veio a resposta para o pitch, calma, serena e avassaladora: “Agradeço sua bela apresentação. Muito convincente e estimulante. Mas me deixe ser sincero aqui. Olha, eu comprei essa ação nem sei muito bem o porquê. Hoje, representa menos de 0,5% do meu fundo. É completamente irrelevante para mim. Não vale o tempo do meu analista estudar. Então, não compro, nem vendo. Obrigado.”
Em um minuto e 45 segundos, a reunião estava terminada. Eu queria me levantar e ir embora, correr para casa. A humilhação moral, intelectual e financeira já me parecia suficiente. Mas ao nosso gestor não bastou. Então, para minha devastação completa, ele emendou: “Ah, então, só pra eu não perder a viagem, me dá uma palhinha de Hypermarcas. O que você está achando?”.
A morte seria melhor naquele momento. Queria enfiar a minha cabeça sob a mesa. Dado que isso pareceria, no mínimo, um pouco heterodoxo, apelei para o banheiro. “Desculpe interromper, mas onde fica o toalete?” Ah, foi mal, mas eu não presenciaria mais aquilo. Fiquei no banheiro uns 15 minutos. Quando voltei, já estavam se despedindo, para meu alívio.
Aquilo tudo foi patético. Ora, se a ideia era vender a ação (e não comprar) por que não apresentar isso de forma transparente e simples ao potencial comprador? Inventar uma história maluca sob uma pretensa (e idiota) ideia de “tática de negociação”, para despertar o interesse alheio? Aquilo obviamente seria percebido em dois minutos — como de fato foi. Se alguém quer comprar uma ação, não desenha na frente do comprador um cenário magnífico iminente àquela empresa.
A Navalha de Occam está aí como um princípio da parcimônia há muito tempo. Por que adicionar complexidade e elucubrações, entidades multiplicadas às explicações mais simples e efetivas, sendo que podemos falar de forma mais minimalista e reducionista?
Se queríamos vender o tal lote, talvez fosse mais eficiente simplesmente jogar a real, aceitando algum desconto para vender o bloco para o potencial comprador. Simples assim. Não há outra saída, mágica, gol de placa, criação maquiavélica.
Eu lembrei desse caso ao ver o comportamento dos mercados na véspera. As Bolsas em nível global fecharam em forte queda após o Fed cortar a taxa básica de juro norte-americana em caráter emergencial em 0,5 ponto percentual. A interpretação predominante foi de que, se o banco central dos EUA fez isso, é porque sabia de algo além. O super poderoso Federal Reserve estaria vendo uma economia americana muito combalida. Portanto, más notícias. Vamos vender.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, teríamos, sob rigor metodológico, algo como:
1 — A reforma da Previdência do Estado de São Paulo foi aprovada. Péssimo. Sinal de que as contas públicas do Estado eram piores do que imaginávamos.
2 — A atividade industrial chinesa volta a se recuperar depois de semanas parada. Ruim. Desespero para voltar logo com a atividade econômica, dado o claro caos que se abateu sobre os agentes econômicos.
3 — Joe Biden saiu vencedor da Super Terça nos EUA, desbancando Bernie Sanders. Má notícia, porque agora Bernie Sanders vai ser muito agressivo e adicionar volatilidade ao noticiário.
E, claro, por corolário à mesma reação ao Fed ontem:
4 — O Copom sinalizou em comunicado claramente a intenção de reduzir a taxa Selic. Vamos correr para as montanhas. Economia brasileira muito parada e medo de contágio.
Às vezes, as interpretações mais simples são as verdadeiras e efetivas. Boas notícias são boas notícias. Cada vez mais, as coisas, do ponto de vista estrutural e fundamental, apontam para a compra de ações. Intensificamos o já presente cenário TINA (there is no alternative). Estamos, de certo modo, reféns do sistema. Lá na frente, a conta vai chegar, provavelmente com algum choque geopolítico ou conflito social disparado pela ampliação da desigualdade. A interrupção do bull market, em termos estruturais, não me parece provável a partir do coronavírus. E ela ficou um pouco mais longe a partir das medidas adotadas desde a última terça-feira.