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Felipe Miranda: As vantagens do ceticismo

10 jun 2020, 17:04 - atualizado em 10 jun 2020, 17:05
“Onde deveria o investidor se situar entre pessimista e otimista?” pergunta o colunista

Roger Scruton foi talvez o grande expoente do conservadorismo moderno, o maior representante britânico dessa corrente possivelmente desde Edmund Burke. A obra de Scruton merece ser lida a qualquer momento, mas a situação pede-lhe um carinho especial.

Roger Scruton acreditava que o valor da existência e de uma vida se constrói sobretudo na relação com o outro. “A redenção vem do outro. Reconhecemos, em nosso ser, que não estamos sozinhos, que o que importa para nós — nossa salvação — é o amor, a compaixão e o perdão que os outros nos concedem.

O significado da vida emerge deste diálogo entre o eu e o outro, quando cada um assume total responsabilidade pelo ser de ambos.” Em tempos de polarização e cólera, colocar-se no lugar do outro com empatia é uma rara e preciosa atitude.

O filósofo nutria uma preocupação estética grande. A beleza lhe revelava uma verdade fundamental, de que ser é um presente e receber esse presente é uma missão.

Um de seus livros mais recentes é “As vantagens do Pessimismo”, que relaciona tragédias e desastres da história da Europa a consequências de um falso otimismo e de idealizações enganosas que dele derivavam.

Escorados em um desvirtuado idealismo, atraídos por um “pseudo paraíso”, poderíamos enveredar por meandros terríveis — o fascismo, o nazismo e o comunismo seriam exemplos desse falso otimismo. A solução estaria na proteção da cultura do perdão e da ironia.

Aí está uma matriz conservadora implícita: preservaremos as tradições e instituições antes de embarcar em ideologias amparadas em falsos otimismos.

A questão do pessimismo sempre foi um tema caro à filosofia. Inclusive, costuma se atribuir uma maior profundidade aos autores tidos como mais pessimistas. Uma elevação da melancolia como um certo valor ontológico, contrariamente à visão mais frívola e tida como superficial dos otimistas.

Na hora de convidar para um almoço na sua casa, você vai atrás daquele amigo todo animado, falastrão e piadista, com uma perspectiva construtiva da existência (embora ele mesmo nem pense nessa história de “perspectiva de existência”). Já se for o caso de alguém para tocar seu dinheiro, o caminho mais frequente tende a ser aquele que aponta na direção do financista austero, responsável, circunspecto.

Schopenhauer, Montaigne e Nietzsche costumam ser relacionados como representantes do trio clássico de filósofos pessimistas, embora eu, sinceramente, tenha certa dúvida sobre o pertencimento dos dois últimos ao grupo.

Daniel Kahneman e Amos Tversky, a dupla falível das Finanças Comportamentais (sim, porque, a despeito da glória recente, também há falhas e limites nas Finanças Comportamentais, como em qualquer outro campo da Ciência Jovem), tinham uma brincadeira curiosa. Kahneman é um pessimista.

“Se eu fosse chamado a responder, diria que nem o investidor pessimista nem o otimista têm chances de prosperar ao longo do tempo”, afirma (Imagem: Pixabay/Audy0073)

Acha que o otimista nutre expectativas excessivas sobre o futuro, que, quando não materializadas, ensejam uma enorme frustração. Tversky era o contrário. Afirmava que o pessimista sofria duas vezes, por antecipação e quando da real realização do cenário negativo.

Proponho uma pergunta como exercício: onde você se coloca entre pessimista e otimista? Não vale responder “realista”. Colocar-se assim apenas denota uma autoavaliação excessivamente otimista, como alguém capaz de ler a realidade melhor do que os outros.

Um narcisismo e um egocentrismo disfarçados de concretismo. Todos se acham realistas. O pessimista acha a realidade péssima; o otimista, ótima.

Reformulo a pergunta para dar o viés mais preciso a nossos fins: onde deveria o investidor se situar entre pessimista e otimista? E mais: essas características deveriam se alternar conforme o cenário?

Se eu fosse chamado a responder, diria que nem o investidor pessimista nem o otimista têm chances de prosperar ao longo do tempo. O viés adequado é o do cético, daquele que duvida das coisas, que não se pauta por um prognóstico específico.

O pessimista tem certeza de que o cenário ruim vai se concretizar. Já o otimista tem certeza do contrário. O cético duvida dos dois cenários. Ele admite o não saber e está preparado para qualquer um dos dois eventos.

Em alguma medida, é a consagração da proposta romana do “amor fati”, posteriormente retomada por Nietzsche, de aceitar (e se preparar para) o destino seja ele qual for.

É a essência do All Weather Portfolio de Ray Dalio, de se montar um portfólio para qualquer clima, sem tentar cravar qual dos cenários vai acontecer.

O cético apenas questiona e não se posiciona integralmente em favor dos pessimistas ou dos otimistas. É a nossa posição cabível diante da multiplicidade de acontecimentos que podemos ter à frente, sendo sempre impossível antevermos qual dos eventos vai, de fato, se concretizar.

“Buffett vendeu sua posição de aéreas e, posteriormente, os papéis subiram 70%. Isso faz dele um idiota?”, indaga o colunista (Imagem: Reuters/Lindsey Wasson)

O ceticismo nunca esteve tão ausente entre os investidores. E quando ninguém está preparado para eventos negativos, é aí que o nível de risco está mais alto.

Você só escorrega na casca de banana que não enxergou. Estimulados pelos ganhos completamente fora do padrão histórico desde o mês de abril, investidores recém-chegados ao mercado se acham superiores a Warren Buffett. Não é uma hipérbole ou uma opinião pessoal. É um fato objetivo.

Entro pela manhã no MarketWatch e leio: “Warren Buffett is ‘an idiot’, says investor who claims daytrading is ‘the easiest game I’ve ever played’” (Warren Buffett é um idiota e o daytrading é o jogo mais fácil que eu já joguei). Bom, meu ceticismo me impede de achar Warren Buffett um idiota.

Também não acho que daytrading é um jogo, tampouco fácil. Buffett vendeu sua posição de aéreas e, posteriormente, os papéis subiram 70%. Isso faz dele um idiota? Ou será que havia, de fato, uma matriz de risco e retorno muito desfavorável naquele momento? Não poderia ser o caso de que Buffett apostou no cenário mais provável (negativo para as aéreas), mas acabou se materializando, ao menos temporariamente, o improvável?

O investimento é feito com base nas informações disponíveis ex-ante e se pauta (ou deveria se pautar) por probabilidade. Se um cenário de 1% de chance acaba se concretizando (e a cada 100 vezes, na média, um cenário de 1% vai se materializar), devemos dizer que o investidor que apostou no cenário de 99% de chance é um idiota?

Outro exemplo, da CNBC, no mínimo curioso: “The hot new thing to make your stock pop: go bankrupt”. (A nova coisa quente para fazer sua ação bombar: decrete falência). A matéria comenta a alta de pelo menos 70% das ações de Hertz, Whiting Petroleum, Pier 1 e J.C. Penney (todas quebradas) na segunda-feira.

Estaremos fazendo a coisa certa em valorizar de forma tão abismal essas ações? Antes de responder, aponto o exemplo da Chesapeake, empresa de shale cujas ações se multiplicaram por seis vezes desde as mínimas — quebrou ontem, entrou em Chapter 11; os papéis derreteram 70%.

Eu poderia até entender a ausência de ceticismo em investidores recém-chegados à B3. Você entra e em dois meses ganha 50%. A tendência natural é mesmo de se achar um gênio, Buffett ser um idiota e o daytrading ser o jogo mais fácil que você já jogou. Até aí, tudo bem — ao menos até a próxima correção ou crise.

O mais surpreendente, para mim, é essa abordagem, que despreza os ensinamentos elementares sobre gestão de risco, ser patrocinada por profissionais supostamente experientes do mercado. Há quem afirme que “a pessoa física deu uma aula nos estrangeiros”.

Será mesmo? Devemos julgar apenas pelo retorno (sem considerar o nível de risco assumido), em especial em tão curto intervalo de tempo? Ou será que muitos assumiram riscos desproporcionais e tiveram sua irresponsabilidade premiada pelas intempéries da deusa Fortuna? Quanto mais louco e irresponsável você foi desde março, mais dinheiro você ganhou.

Nunca saberemos. A História só conta o que foi, nunca o que poderia ter sido.

Para Felipe, o mercado brasileiro ficou pequeno para o tamanho dos grandes fundos locais (Imagem: B3/Linkedin)

A julgar pela disposição ao risco e pelo nível de liquidez no mundo, consubstanciada pelos recentes indicadores de atividade acima do esperado, se eu tivesse de chutar, com uma arma na cabeça, diria que os ativos de risco devem continuar subindo no curto prazo.

Contudo, preciso confessar: o mundo em que daytraders iniciantes dão aula para Warren Buffett é, definitivamente, um lugar que exige uma grande dose de ceticismo.

Um último comentário hoje, um pouco alheio ao contexto. Peço desculpas pela falta de coesão, mas é algo que julgo ser importante e não está recebendo a devida atenção.

O mercado brasileiro ficou pequeno para o tamanho dos grandes fundos locais. O que aconteceu recentemente com o dólar, com uma queda totalmente fora dos padrões em poucos dias, com volatilidade superior à da Bolsa, é um exemplo de como o acionamento de stops por poucas casas foi capaz de causar uma hecatombe nos preços.

Não subestime o risco de liquidez. Mais do que nunca, vale o alerta talebiano: o mercado é um teatro grande com uma porta pequena.