Opinião

Felipe Miranda: Antes de partir

30 nov 2018, 10:47 - atualizado em 30 nov 2018, 10:47

Por Felipe Miranda, CEO da Empiricus Research

“Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice – esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.”

João Guimarães Rosa – A Terceira Margem do Rio

Papai faria aniversário na próxima quarta-feira. Os dias em torno do 5 de dezembro são sempre um pouco mais difíceis. Não que a ausência não seja sentida no restante do ano. Óbvio que sim. Mas, nesta época, num daqueles paradoxos esquisitos da vida, a ausência se faz mais presente e o vazio que existe dentro da gente se alarga, como se empurrasse os órgãos para criar mais espaço entre as vísceras – é lá que se instala esse tipo de coisa. Mamãe fica pior. Ou não. Talvez ela apenas demonstre mais. Acho que é isso.

Na próxima semana, estarei fora do Brasil, num curso de análise de tech stocks na Universidade Columbia, em Nova York, na companhia do Rodolfo. Uma vez por ano pelo menos, eu e ele temos o compromisso de investir na gente mesmo, para que você possa investir melhor a partir do nosso próprio refinamento analítico. Como o Day One estará a cargo de outras pessoas nos próximos cinco dias, escrevo hoje aquilo que, em tese, deveria ser publicado no dia 5 de dezembro.

Eu tenho dois grandes arrependimentos na vida. Um deles foi justamente não ter tido uma última conversa fluída com meu pai. Ele fora ao hospital Nove de Julho para exames de rotina. Lá dentro, sofreu infarto. Então, seria encaminhado para um cateterismo. Eu estava no trabalho, claro. Mamãe ligou pedindo que eu fosse às pressas pra lá. Sai correndo, dirigindo ao estilo “Velozes e Furiosos” e encontrei o papai se preparando para a operação. Tivemos pouco tempo juntos ali. Ninguém sabia muito bem o que falar. Também não me lembro de tudo. Acho que a tensão do momento era tanta que cansou a memória. Ou talvez seja uma tentativa de esquecer o que não se quer lembrar.

Uma imagem, porém, ainda é nítida na minha cabeça. Ele estava sentado na cadeira de rodas, já saindo para a cirurgia. Antes de partir, virou a cabeça noventa graus e olhou fundo nos meus olhos, com ar de tristeza e tentando disfarçar o medo, para dizer: “Cê cuida da sua mãe”.

Eu não imaginava o que viria. A gente nunca teve a dimensão do tamanho do problema. Por mais que a miastenia corroesse há anos seu tecido muscular, em nenhum momento pensamos no risco de morte iminente.

Respondi ao pedido de maneira idiota: “Isso não faz nenhum sentido. E eu não vou falar desse assunto”. Ele esbravejou de volta: “Cê cuida da sua mãe, entendeu?”. E assim se foi. Fiquei atônito e não consegui dizer nada. Aquelas foram as últimas palavras entre a gente. Pouco tempo depois, ele sofreu um derrame, que encharcou seu cérebro e provocou sua morte.

Ainda penso nesse dia. Será que, se o tivesse tranquilizado e respondido apenas que sim, que a mamãe estaria muito bem cuidada independentemente do cenário, será que ele teria uma passagem mais calma e serena? Será que conseguiu deixar esta vida em paz ou se foi preocupado em não ter deixado as coisas aqui mais arrumadas?

Não posso voltar àquela sala de hospital. O passado não se muda. Hoje, cumpro e honro a promessa que não verbalizei da forma que posso, dando à Dona Lúcia todo o cuidado e o conforto que ela merece. E assim será para sempre. Mesmo se algo mudar e não houver nem mesmo como cuidar de mim, dela cuidarei, mesmo nas horas mais escuras – são essas as horas que contam de verdade. Carrego-a tatuada no lado externo do braço direito e bem no meio da alma.

De onde ele estiver, acho que consegue entender que, no fundo, é isso que interessa. Se, por imaturidade, arrogância e idiotice, não pude lhe responder como merecia naquele 13 de novembro de 2010, hoje o faço com os próprios atos. Lá do céu, papai hoje consegue ver a mamãe feliz e eu rezo para que isso seja suficiente para perdoar-me por aquela imbecilidade e por tantas outras.

Sei também que, se estiver vendo tudo isso, sente orgulho da Empiricus . E eu posso lhe dizer que não estaria aqui se não fosse por ele. O que aprendi com o Ramiro está bem longe dos livros-textos (lá não cabem esperteza de rua ou palavrões), mas serve muito mais do que os quatro anos na USP e os outros quatro na FGV, como mestrando e professor.

Como maior lição de vida, talvez guarde o fato de não desistir e não reclamar, além dos valores éticos e morais. Lembro dos tempos terminais, em que já andava com muita dor e dificuldade. Eu suplicava para que ficasse em casa e repousasse. Ele apenas respondia: “Vou pro trabalho. Cê me leva?”. Trabalhava dez horas por dia, sem uma palavra de reclamação, com o corpo castigado pela doença e o espírito machucado pelos ferimentos da vida.

Íamos falando de Bolsa no caminho e ele contava histórias ainda dos tempos de cowboy no mercado. Algumas balizam até hoje minha forma de encarar esse negócio e compartilho algumas neste texto.

Tinha uma coisa que ele repetia com frequência e que me parece muito importante para o momento, porque, diante de certa gourmetização do mercado de capitais e dos discursos politicamente corretos, se perdeu. Era mais ou menos assim – e eu espero que você entenda como caráter metafórico que ela obviamente carrega: “A turma do Garantia era cowboy e safa. Não tinha elegância. Alguns deles chegavam a me confidenciar nos almoços: ‘Aqui a gente é meio trombadinha, quer ganhar dinheiro, sabe? Não tem papinho’”.

No mercado, você não precisa dos melhores modelos, não precisa estar certo, não precisa contar para ninguém o que está fazendo, nem precisa ouvir nada de ninguém. Você não presta conta. Seu patrão é a sua conta bancária. Você tem que ganhar dinheiro. Money talks, bullshit walks! Quem ganha, ganha; quem perde, explica. Entre neste jogo para ganhar, e ganhar significa colocar grana no bolso.

Em tempos de Uber, Yellow e sei lá mais o quê, lembro de uma outra parada. “Se você quer ter alguma sensibilidade de como andam os negócios no país ou, ao menos, no seu entorno, pergunte ao taxista como está a praça. Esse camarada sente mais a economia do que o economista do seu banco. Até o pulso da atividade econômica chegar aos indicadores, mesmo que antecedentes, o taxista já está faturando 10 por cento a mais.”

A verdadeira geração de insights está na rua, em informações que ainda não foram para os indicadores oficiais e a pesquisa estruturada e esterilizada. Na hora que o IBGE divulgar a taxa de desemprego, tudo aquilo já está no preço. Sua oportunidade já passou faz tempo e é hora de vender – não mais de comprar.

O smart money sempre está à frente das notícias mais consensuais. Enquanto papai, mesmo dentro de um banco e com acesso à boa informação, comprava ativos de risco entre 1994 e 1995 “animadíssimo com o Plano Real e com o que viria dali”, o Jakurski, vendo com olhos de águia a crise do México, vendia tudo (o que rendia lá adjetivos pouco delicados ao brilhante gestor nos nossos jantares de família).

Se o papai está mesmo vendo tudo isso, eu sinceramente não sei. Não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem. Uma das coisas que ele sempre falava – e eu, com toda a sabedoria e arrogância dos adolescentes que sabem tudo, rebatia de imediata – era sobre o rali de fim de ano. Vai saber, né? Fato é que o Ibovespa está em recorde histórico, mesmo com um exterior que não se apresenta nem um pouco amigável. A Bolsa brasileira tem sido um excelente investimento neste ano, mesmo quando mercados emergentes caem cerca de 25 por cento.

A pergunta que se coloca neste momento é: até onde podemos ir se o exterior se mostrar um pouco mais amigável? Estamos nas máximas históricas mesmo com o gringo tirando 10 bilhões de reais da Bolsa em novembro. Imagina o que pode acontecer quando o estrangeiro chegar para a festa.

E aqui entram dois pontos interessantes. Boa parte da retirada de fluxo da periferia em direção aos EUA neste ano se deveu por dois fatores. O primeiro ligado à preocupação com o juro básico norte-americano. E o segundo atrelado às preocupações com a guerra comercial entre EUA e China.

Sobre o primeiro elemento, a comunicação oficial recente do Fed tem sido bastante emblemática. Na quarta, Jerome Powell discursou falando que o juro nos EUA está próximo do neutro, o que sugere um aperto monetário à frente menos intenso do que se esperava. Ontem, a ata do Fed reiterou o prognóstico. Em paralelo, o PCE, medida queridinha de inflação, voltou a se apresentar abaixo da meta informal do BC norte-americano. Se o medo de uma subida muito intensa do juro nos EUA foi um dos maiores responsáveis para a retirada de recursos de mercados emergentes em 2018, o alívio desse temor tende a, ceteris paribus, devolver fluxo à periferia.

Então, vamos ao segundo fator: a guerra comercial. Aqui é um bicho mais estranho, porque não envolve apenas a racionalidade econômica estrita, mas também questões de soberania política, desglobalização e até mesmo questionamento de valores ocidentais clássicos, naquilo que tenho chamado de Pós-História (ou para seguir o amigo Marcos Troyjo, cuja indicação para secretário de Comércio Exterior é merecidíssima e me enche de otimismo, de “Fim do Fim da História”), além, claro, do Twitter de Donald Trump (whisky e redes sociais formam uma combinação explosiva! Sim, eu já testei). Contudo, podemos também nesse aspecto ter novidades importantes com a reunião do G20 neste fim de semana, ainda que o mercado se mostre cético neste momento. Pragmaticamente, porém, parece uma assimetria favorável. Como ninguém espera muita coisa, qualquer sinalização minimamente favorável já é lucro.

Se o vento de fora parar de atrapalhar, a sabedoria paterna mais uma vez acabará se impondo: vai ter rali de fim de ano. É ridículo, mas faz sentido.