Colunistas

Felipe Miranda: Ainda estamos em 2020, mas só se fala em 2022

06 abr 2021, 13:12 - atualizado em 06 abr 2021, 13:12
“Antes de 2022, precisamos viver este ano, sendo que, em termos práticos, nem 2020 parece ter acabado” diz o colunista.

“Desejo sempre que encontre bastante paciência em si para suportar e bastante simplicidade para crer, que confie cada vez mais no que é difícil, entre outras coisas na sua solidão. No restante, deixe a vida acontecer. Acredite-me: a vida tem razão em todos os casos.

Quanto aos sentimentos: são puros todos aqueles que o senhor concentra e guarda; impuros os que agarram só um lado de seu ser e o deformam. (…) 

Sua dúvida pode tornar-se uma qualidade se o senhor a educar. Deve-se transformar em saber, em crítica. Cada vez que ela quiser estragar uma coisa pergunte-lhe por que aquilo é feio. Peça-lhe provas, examine-a; talvez a ache indecisa e embaraçada, talvez revoltada. Mas não ceda, exija argumentos. Ponha-se a agir assim, atenta e consequentemente, cada vez, e dia virá em que, de destruidora, ela se tornará sua melhor colaboradora, talvez a mais sábia de quantas cooperam na construção de sua vida.”

Se ontem iniciei com “Cartas a um jovem terapeuta”, de Contardo Calligaris, hoje começo com “Cartas a um poeta”, de Rainer Maria Rilke. Há algo dos romanos nesse trecho e seu amor fati, o amor ao destino, a aceitação de tudo aquilo que lhe acontece. “A vida tem razão em todos os casos.” Existe aí também um pouco de Nietzsche e seu desprezo não pelas águas revoltas e turbulentas, mas, sim, pelas águas rasas. “Confie cada vez mais no que é difícil.” Por fim, vejo, como um bom cético, uma ode à dúvida, que na verdade é saber, conhecimento.

Em entrevista recente ao Estadão, Luis Stuhlberger apontou uma chance em torno de 10% de termos no segundo turno da eleição presidencial de 2022 alguém diferente de Lula e Bolsonaro. 

A polarização, de fato, ocupa as manchetes, provoca volatilidade no mercado e gera desesperança em muitos. A virtude deveria estar no meio. O mercado cobra uma candidatura de centro competitiva, que parece difícil.

Mas será tão difícil assim? Devemos ignorá-la só porque não a estamos vendo nitidamente agora? Ausência de evidência não é evidência de ausência. 

Embora difícil da maneira com que imaginaríamos arquetipicamente, talvez, na ausência de uma candidatura de centro, tenhamos três em 2022.

Os jornais do último domingo, por meio de colunistas experientes, deram uma pequena pista nesse sentido.

Na Folha, Arminio Fraga escreveu: “(…) me parece óbvio que, na campanha, ele [Lula] se moverá para o centro”. Ao final do mês de março, FHC já havia dado entrevista em que apontava Lula caminhando para o centro na eleição de 2022. Ricardo Lacerda, da BR Partners, em entrevista à mesma Folha, disse: “se voltar o Lula de 2002, cercado de pessoas competentes, mantendo as alas ideológicas e fisiológicas do PT mais afastadas, abraçando uma agenda de equilíbrio fiscal, podemos ter um cenário benigno”.

Já teríamos o primeiro “centrista”. Lula é a prosopopeia de Macunaíma, um ser amoral (diferente de imoral), capaz de destruir (momentaneamente) e (re)construir pontes sempre que necessário. Nunca foi um revolucionário, conforme lembrou Arminio em sua última coluna, mas um líder sindical carismático, pragmático e inteligente.

Em artigo, com a característica provocadora de sempre, Luiz Felipe Pondé foi além: os conservadores deveriam preferir uma vitória de Lula sobre Bolsonaro. Segundo o autor, os dois seriam péssimos, mas Lula seria um mal menor. O conservador, acima de tudo, é um cético. Ele vê valor nas instituições, nas tradições, nos mitos, nos ritos e na cultura atual justamente porque não se dá a expectativas ingênuas de que algo novo possa sobrepujar o antigo. Ele duvida do que vem por aí e ainda não foi submetido ao teste do tempo. Sem juízos de valor, Bolsonaro vê Deus acima de todos, acredita na cloroquina, confia nos filhos, identifica teorias conspiratórias e, ainda mais, crê em si mesmo. Pode ser qualquer coisa, menos um cético.

Ocorre, porém, que há também outro lado dessa história. Conforme muito bem lembrou Stuhlberger na famigerada entrevista, o governo Bolsonaro também já mudou nas últimas semanas. Talvez não na velocidade e na intensidade desejada pelos críticos. Objetivamente, porém, há méritos na mudança. Em termos concretos, passou a valorizar de maneira mais enfática as vacinas e o uso de máscara. Parece disposto a vetar parcialmente o Orçamento inexequível, reduz o espaço da ala ideológica. O governo tenta se aproximar do mercado. Ontem mesmo foram três lives em favor da maior harmonia entre Executivo e Legislativo, da agenda de reformas (administrativa e tributária) e do programa de privatizações, de que a Eletrobras é protagonista. 

Seja por medo de Lula, pelo cartão amarelo recebido de Arthur Lira, pela perda de popularidade nas pesquisas ou pelo aumento dos casos e das mortes de Covid-19, Bolsonaro também caminhou para o centro. Cada vez mais isolado, conforme lembram as capas de revistas, deveria caminhar ainda mais.

Teríamos, portanto, o segundo candidato de centro.

O personalismo e o populismo acabam se encontrando. A importância da agenda e das instituições sobrepuja qualquer pseudocaracterização pessoal. Para boa parte da população brasileira, Lula e Bolsonaro representam o mesmo arquétipo. Não é tanta surpresa que, por vias tortas, eles acabem se encontrando no meio. O leitor mais crítico poderia apontar que não precisamos de mitos e arquétipos agora, mas de um gestor competente.

E o terceiro candidato de centro viria justamente de um novo diferente dos dois. FHC fez quase uma carta de convocação nacional em seu artigo dominical. Samuel Pessôa destacou o trabalho de Eduardo Leite em prol do combate à pandemia e do saneamento das finanças públicas. Eduardo Muffarrej faz elogios rasgados a Luciano Huck. O nome em si ainda não emergiu. A maré das circunstâncias muitas vezes unge naturalmente os fenômenos. Seja como for, há um nítido clamor popular por uma terceira via.

Curiosamente, enquanto o mercado busca algum candidato de centro ainda não muito bem identificado, podemos ter três, cada um com seu disfarce.

Acima disso, porém, há questões mais imediatas. Antes de 2022, precisamos viver este ano, sendo que, em termos práticos, nem 2020 parece ter acabado. Estamos vivendo ainda as mesmas mazelas sanitárias, políticas e econômicas. Até 2022, podemos ter a abertura da economia local (veja o que está acontecendo nos EUA e em Israel), a reforma administrativa (boas chances), a reforma tributária (sou menos otimista) e a privatização da Eletrobras (boas chances). 

Céticos desconfiam da transcendência. Eles valorizam a imanência. Há muita água para passar sob a ponte até 2022. E isso pode ser suficiente.

Compartilhar

TwitterWhatsAppLinkedinFacebookTelegram
Giro da Semana

Receba as principais notícias e recomendações de investimento diretamente no seu e-mail. Tudo 100% gratuito. Inscreva-se no botão abaixo:

*Ao clicar no botão você autoriza o Money Times a utilizar os dados fornecidos para encaminhar conteúdos informativos e publicitários.

Usamos cookies para guardar estatísticas de visitas, personalizar anúncios e melhorar sua experiência de navegação. Ao continuar, você concorda com nossas políticas de cookies.

Fechar